
Começando, comme il faut, pelo início, atribuo a vários excessos pós-revolucionários alguns dos males de que padecemos, embora não o faça de forma exclusiva. Diz-se que, ao tempo de Salazar, éramos um povo sem qualificações académicas e atrasado nos hábitos de sociais, mormente pela clausura a que o País se encontrava sujeito. Creio que é verdade.
Todavia, não deixo de afirmar que o 25 de Abril, com os excessos próprios dos períodos que se seguem a qualquer revolução, trouxe o erro de liquidar as elites, procurando, pela lamentável inspiração marxista que dominou muitos dos arautos dos novos tempos, instituir uma ordem em que fossemos todos iguais, no pior sentido do termo. Se é bom que o sejamos no plano dos direitos, liberdades e garantias, a verdade é que só por estupidez nos acharemos igualmente capacitados a desempenhar o mesmo papel na vida; nem num grupo de amigos, quanto mais num país…
Era a época dos saneamentos, das passagens administrativas nas universidades (estão tão caladinhos, muitos dos que se entretêm com a Universidade Independente…) e do Estado estilo “vaca leiteira” que, ainda hoje, dá de comer a muita gente, num paradigma que terá o seu corolário máximo na “tigela de ferro chinesa” (um emprego que vale para a vida e que sustenta uma família), sendo que mesmo essa já começou a “enferrujar”.
De caminho, com a perseguição às elites (as humilhações que sofreram, por exemplo, alguns professores da Universidade de Coimbra, se calhar, às mãos de muitos que, entretanto, se aburguesaram), destruíram-se referenciais de valores. Podemos discordar da pauta ética da vida cívica do Estado Novo, mas ainda havia gente com trato social elevado, inclusive entre as pessoas de baixa instrução e de magras posses. Ao invés, a lógica do “é proibido proibir” (a versão high tech desta atitude anarca é o Bloco de Esquerda) favoreceu o laxismo e a libertinagem, não sendo de espantar que se degradem até os mais banais padrões de cortesia e o próprio requinte na afectividade.
Contudo, baralhando e voltando a dar, há muitas explicações que devem buscar-se em tempos anteriores. Começo por algo que já li e com cuja essência concordo: gostamos muito de ser tutelados. Se, a um tempo, queremos ser livres para tudo e mais alguma coisa, não nos importamos de ter um “paizinho” que olhe por nós. Dito de outro modo, queremos que as coisas se vão fazendo, sem que tenhamos a maçada de fazermos a nossa parte na construção de uma sociedade melhor e mais próspera (assim, com empenho de cada um se explica, a meu ver, a vibrante vida cívica, entre outras nações, dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha).
De um modo empírico, e num cenário indubitavelmente democrático, encontro paralelos nas maiorias absolutas de Cavaco Silva (1987 e 1991) e de José Sócrates (2005). Com as devidas distâncias entre eles, falamos de personalidades fortes e, concorde-se ou não com o rumo, de homens de reformas que preferem quebrar do que torcer, correndo, quando necessário, sozinhos e contra o vento. Sendo que os dois contrariaram a tendência do método de Hondt (que favorece mais a representatividade do que a governabilidade), parece-me que, nesses três momentos de aclamação sufragada, nos reencontrámos com a nossa idiossincrasia. Passámos procuração a cidadãos ilustres para que, mesmo a custo de alguma qualidade de vida (veja-se o caso actual), fizessem o que havia e há para fazer, sem que nos maçassem ou macem excessivamente com consultas frequentes.
A culpa é dos dois? Não.
Governaram mal? Até 1993, sei que não, no primeiro caso. Esperemos para ver, no segundo.
Vem mal ao mundo deste nosso gosto pelo “pau e cenoura”? Sim, pois poderíamos eleger os mesmos cidadãos, sendo mais informados e mais participativos.
No fundo creio que combinamos o pior do liberalismo continental europeu (a ideia de que somos mais espertos do que a Lei e de que a Ordem existe para se moldar) com a essência latina, que nos leva a esquecer a “conta da mercearia” sempre que há Sol, festa ou futebol…
Cumprimos com medo da punição! Se há mais receitas fiscais, tal não se deve a uma noção mais apurada do bem comum, mas sim à maior agressividade da administração fiscal. Se diminui a sinistralidade rodoviária, não podemos saudar o maior civismo dos condutores, mas sim aplaudir o endurecimento das contra-ordenações e penas. Se há menos mordomias associadas a certos lugares públicos, não podemos congratular o ascetismo dos titulares, mas sim felicitar a maior vigilância mediática (embora entenda que estejamos a cair no extremo oposto: o miserabilismo populista).
E sejamos francos, embora todos gostemos de ser portugueses e não tenhamos dúvidas (eu, pelo menos, não tenho) de que Portugal é melhor pátria que se pode ter, sabemos que, em conjunto, temos uma tentação para sermos mandriões, invejosos e corruptos.
Voltando a um dos textos anteriores, creio que a Educação e Cultura poderiam curar-nos dos nossos males, mas, com a sua degradação acentuada, não sei se estamos ainda em condições de começar por formar os curandeiros…
O pior é que, nestes domínios, temos pouco tempo, já que ninguém tem saudades do que nunca conheceu. Já noutros, a vitória de Salazar deixou-me a pensar…