quarta-feira, 1 de março de 2017

Cortejo dos condenados

Anda o nosso País a festejar o Carnaval (aqui no Brasil nem vos conto…) e tento perceber que imagem colhe alguém que o mira de fora.

Verdade seja dita, apesar de ser inquestionável e inegociável o meu patriotismo, fico com a sensação de que a história se vai repetindo, como se todo o ano estivéssemos condenados a manter-nos à tona de água, sem sair de um cortejo com mais toques de marcha de condenados do que de euforia carnavalesca.

Senão vejamos: a novela em torno da apresentação da declaração de rendimentos de António Domingues prolonga-se indefinidamente, chegando já ao correio electrónico e às mensagens telefónicas. Que não se iluda o leitor! Considero essencial o apuramento da verdade sobre o que disse o Ministro das Finanças e quem mais interessar ouvir, dada a importância da Caixa Geral de Depósitos e, mais do que isso, do valor ínsito da verdade. Porém, parece pouco para ser o assunto do dia de uma Nação velha de mais de oitocentos anos.

Em registo idêntico classifico a não divulgação da fuga de capitais para paraísos fiscais. É grave? Gravíssimo! Mas e o que temos para além disso? Offshores e Paulo Núncio são o novo capítulo dos manuais de História de Portugal, daqui a trinta anos? Oxalá que não…

Morbidamente divertido acaba por ser o facto de os partidos (vê-se bem no PSD) ainda não terem associado o nível rasteiro do quotidiano político à dificuldade de recrutar gente de nomeada para concorrer às autarquias (isto a mais de alguns dos actuais dirigentes locais e distritais terem ando divertidíssimos a decepar cabeças pensantes e, logo, pouco dadas a obediências acríticas).

Quem tenha uma carreira de sucesso e a liberdade de pensamento como pedra de toque do seu existir dificilmente quererá trocar a sua realização pessoal por salários que já pouco têm de principesco e sujeitar-se a gerir escândalos, sem a real sensação de que podemos dar saltos de qualidade.

Apesar de tudo, guardo boa dose de expectativa para o embate entre Manuel Machado e Jaime Ramos, sendo que este último me parece ser umas das excepções às dificuldades de recrutamento laranja que mencionei. Espero, todavia, que o debate fuja à banalidade e ao ajuste de contas. Li por estas páginas que o Presidente-recandidato resolveu problemas graves com o Convento de São Francisco, o que se torna num convite à oposição para recuperar o tema da Ponte Rainha Isabel… Creio que Coimbra precisa de ideias e não de contabilidade política.

Vendo ao longe, fica a ideia de que parecemos condenados a pagar a conta do leiteiro, da luz e da mercearia e a ver se os trocos do fim do mês chegam para ir à praia. Com franqueza, parece pouco para quem fez, como dizem, a primeira globalização…

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Donald não é pato

Com as evidentes e importantes distâncias, vejo os protestos madrugadores contra a posse de Donald Trump quase como vejo a resistência dos taxistas à Uber: a prazo, vale o mesmo que espetar o dedo numa fenda de uma barragem.

Diria mesmo que as proezas do Presidente norte-americano apenas foram espoletadas, já que, depois de telefonemas de Taiwan e para Moscovo, e de revogações de tudo e mais umas botas, conseguiu mesmo, segundo fontes lidas, fazer tremer uma certeza que tinha como bíblica, virando Maria Vieira contra Ana Bola.

Brincadeiras à parte, a verdade é que existe um ponto de vista analítico de que devemos partir: Trump ganhou as eleições, competindo a quem deseje demonstrar o contrário (estribado em interferências russas ou outras acusações). E nem vale a pena repetir as lamúrias sobre os (muitos) votos a mais que teve Hillary. O sistema eleitoral não pode ser um exemplo democrático quando ganham os favoritos dos artistas e jornalistas, e uma maquinação demoníaca quando vence o patinho feio (neste caso, o Donald).

Não quero, com o que já vai dito, que fique a ideia de que subestimo o que temos em mãos. Desamparar os mais desfavorecidos nos EUA pode gerar convulsão num país que necessitamos de ter estável e atento ao mundo. Por falar nele, “America first” significa que o nosso irmão maior vai deixar de nos defender nas bulhas que vêm por aí e que se antevêem cada vez mais perigosas. Por seu turno, impedir a circulação de muçulmanos em modo lato apenas lançará fermento de ódio em massas já inclinadas a acreditar em patranhas que incitam à violência contra o “outro”, só porque é outro. Um muro, qualquer que ele seja, divide e aumenta ressentimentos. E por aí fora…

Porém, voltamos à mesma: a constituição americana permite tudo isto? Parece que sim.

Este Donald, assim, é todo menos pato e, escorado por uma péssima escolha de opositor por parte do Partido Democrata, limitou-se a cavalgar os medos que assolam as sociedades contemporâneas, muitos dos quais causadas por predadores económicos como ele próprio, os quais, sem preocupação com uma redistribuição mais justa da riqueza, foram subjugando milhões aos vendedores de falsas esperanças.

Talvez resida neste momento o despertar de uma Europa balofa e frouxa que achou que a invasão da Ucrânia e o Brexit eram culpa exclusiva de, respectivamente, russos e ingleses (os britânicos mais ansiosos por sair da UE). Já era tempo de os franceses pararem de pensar que são a Luz, de os alemães entenderem que economias sãs hão-de resolver todos os problemas, de os portugueses se fiarem nos brandos costumes para passar entre os pingos da chuva, etc, etc… E, já agora, também vinha a calhar que os comissários, eurodeputados e milhares de burocratas que sustentamos a pão-de-ló acabassem com discursos redondos para justificar as sinecuras, passando a uma retórica substanciada, motivadora e que responda aos problemas reais; os mesmos para os quais buscaram respostas os eleitores de Trump…