terça-feira, 2 de julho de 2013

A minha audiência com o Don

Embora o título tenha uma insinuação de idiossincrasia mafiosa, o conteúdo visa desmistificar uma ideia pré-concebida e ratificar uma ideia que há muito nutro: a de que não podemos deixar-nos conquistar pelos medos.

Vem isto a propósito de mais uma experiência vivida na Venezuela e que continua a manter viva na minha cronologia uma certeza objectiva que mostra que, conhecido quase meio mundo, o único assalto de que fui alvo foi há 27 anos, em Lisboa, e o único furto em residência que sofri foi há 3, em Coimbra. Sorte?! Pois, com certeza. Nada se faz sem ela… Tarimba?! Quiçá… Porém, os anos e os quilómetros percorridos reforçam a minha determinação de, observadas as cautelas elementares, não “dar a rua aos criminosos” e não tomar o todo pela parte; nem mesmo as cidades ditas perigosas conseguem ter um malfeitor em cada esquina.

Dito isto, vamos à ordem do dia – isto lembra-me as batalhas parlamentares e as saudades que por vezes tenho dos tempos de combate político (ao mesmo tempo que me lembro, diga-se, da iniquidade que também vi) – começando pelo deslindar do mistério maior: no último sábado, contra todas as advertências dos amigos venezuelanos com quem ia falando, mas precatando-me razoavelmente, resolvi ir ao “Festival Movistar de Reggaeton”. Cumpre, então, dissecar o objecto de anunciado delito.


Em primeiro lugar, o evento decorreu no Poliedro de Caracas, local circundado por vários barrios (aquilo que chamamos favelas, no Brasil), e parece que muitos venezuelanos de outra condição passaram a evitar o local. A esse respeito, a primeira absolvição: a segurança abundava, as entradas e as tiendas de comida estavam muito bem organizadas, os sectores eram estanques e tudo prometia um meio-dia e uma meia noite de festa.

Depois cifravam-se os medos e pesadelos em torno do estilo musical que é muito conotado com escalões sociais de mais baixos rendimentos e mesmo com franjas marginais da sociedade. O reggaeton surgiu de uma mescla da chamada música latina com os sons do Caribe – com evidente destaque para o reggae – comportando ainda tonalidades do hip hop. Segundo a maioria das fontes, tem as suas origens em Porto Rico e no Panamá, espalhando-se por toda a América Latina (hoje, um dos bastiões é também a República Dominicana) e, mais tarde, por todo o Mundo, o que, a meu ver e como explicarei, teve o efeito de atenuar a causa de muitos dos medos alheios que fui destilando.

O caminho deste género musical foi sendo feito muito próximo das classes trabalhadoras e dos circuitos juvenis underground, aproveitando os mais jovens – quiçá como sempre sucedeu – a arte para contestar as convenções. Como era de esperar, o reggaeton foi rotulado de obsceno e marginal (falava de drogas, crime e outros problemas dos sectores mais desamparados das cidades), e, reconheça-se especialmente quanto ao primeiro epíteto, com alguma razão quer pelo erotismo a roçar a pornografia de algumas letras iniciais, quer pelo modo de dança que o acompanhava, que era, mais uma vez com predominância nos seus alvores, uma versão hardcore da lambada.

Tendo começado por uma amadora caracterização do género, deixo agora uma breve ideia do que foi o festival organizado pela Movistar, num Poliedro de Caracas (o recinto) que não encheu, ao invés do esperado, quer pela fama de insegurança – pelo menos neste caso, imerecida – quer pela crise que começa a afectar seriamente os venezuelanos (a moeda desvaloriza, os preços sobem, mas os salários não acompanham).

A tarde fez o seu caminho para noite com notas dos artistas locais. A seu tempo, passaram pelo enorme palco montado no estacionamento do Poliedro (onde está prevista a actuação dos norte-americanos Aerosmith, em Setembro – por cá, referirmo-nos aos cidadãos dos EUA como “americanos” ofende os locais, que também reclamam a filiação continental) Manu y Jota,



Oscarcito – o autor de um eloquente “Reggaeton con Gusto” –


e Los Cadillac’s, mais um duo do panorama “reggaetonesco” venezuelano, que decidiu aquecer o ambiente (de forma surpreendentemente eficaz) com temas como “bon bon”.



Contudo, ninguém tenha ilusões, todo este som era apenas a escadaria de pano vermelho por onde haveria de descer “El Rey”, Don Omar, que, aliás, parece ter encarnado o título ao aparecer impecavelmente trajado com fato e gravata (sublinho que não há nada menos usual no mundo do reggaeton, mais conhecido pelas fatiotas berrantes e pelo “desleixo” calculado tributário do Hip Hop e do Rap).



Ante o êxtase generalizado, começou o rol de êxitos do cantor porto-riquenho: “Dale Don Dale”, “Virtual Diva” (celebrizada pelo refrão de que consta o sonoro “Ooh, chequea como se menea”), “Taboo” (a versão “régia” da brasileira “Lambada”) e, entre outros, o apoteótico “Danza Kuduro” que chama a atenção pela participação (que não no concerto) de Lucenzo. Ora bem, sendo que o dito colaborador e autor da versão inicial da música canta coisas como “Mexe Kuduro/ Balança que é uma loucura/ Morena vem ao meu lado/ Ninguém vai ficar parado”, mesmo antes do festival, importava ver quem era o rapaz que tão bem se expressa na língua de Camões, ao lado de El Rey…


O nosso Lucenzo é, nada mais, nada menos, o cidadão Luís Filipe Oliveira, nascido em Bragança e que, ignorado por muitos compatriotas, gravou com nomes grandes da música dançável como Don Omar, Pitbull e Sean Paul. A música mais conhecida na versão gravada com El Rey liderou a prestigiada tabela Billboard Latin Songs. Ou seja, goste-se ou não do estilo, há portugueses capazes de fazer tão bem como os outros…

Retomando e finalizando a narrativa, haveria a minha passagem pelo género de terminar com o dominicano Arcángel (leia-se “La Maravilla”), culpado pelos ensurdecedores gritos das adolescentes. Percebe-se que estamos perante um Justin Bieber do reggaeton, quer pela excitação causada, quer pelas letras.




Em suma, pode dizer-se que se presenciou um mundo à parte, com música muito mais audível do que o esperado e, sobretudo, com uma influência positiva derivada da sua globalização: as letras e a encenação estão hoje muito despojados do seu conteúdo sexual inicial, tendo sido aligeirados para melhor.

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