quinta-feira, 10 de maio de 2012

Gota amarga

Deliberadamente e correndo o risco de apanhar os Leitores pelos cabelos com o assunto, atrasei as minhas reflexões sobre a célebre promoção dos supermercados “Pingo Doce”.

Agora que já li e ouvi milhares de palavras de centenas de pessoas de dezenas de ofícios e inclinações, começo por aí mesmo: este assunto atesta, até mais do que a situação socio-económica de Portugal, o nível intelectual da nossa vida pública. Dias a fio, políticos, analistas, aspirantes a ambos, jornalistas, economistas e toda a gente de que nos possamos lembrar, mais não fizeram do que centrar a existência de uma Pátria de quase novecentos anos numa genial campanha (ninguém o negará, suponho) de uma cadeia de supermercados. Mais elucidativo ainda, mesmo aqueles comentadores com pretensões de elitismo intelectual – os que desprezaram a promoção em causa (algo que não ouso fazer) – prostituíram o seu excelso ego em minutos de exposição televisiva, em círculos mais ou menos quadrados, para nos explicarem a alegada barbárie do evento e a repulsa que a turba lhes causou…

Nos antípodas desta opção estão os que exultaram com a ideia e que a desdramatizam, dizendo que os apertos e confusões registados são comuns em muitas promoções, no estrangeiro. Aqui chegados, refreemos o entusiasmo; que as pessoas se esgadanhem para comprar roupa interior assinada por David Beckham ou Ipad com preços convidativos ainda vá… Não me choca que passem por incomodidades ou façam figuras tristes por bens sem os quais podem bem viver. Já quando toca a bens alimentares e outros essenciais ao quotidiano, preocupa-me constatar que a vida seja tão madrasta que obrigue pessoas a passarem cinco ou mais horas em filas, a descansarem em prateleiras, a saquearem (embora com pagamento a posteriori) os armazéns ou a comerem os alimentos in loco, dadas as provações sentidas.

E, diga-se, também não alinho na censura aos que, aparentemente, terão comprado centenas de euros de mercadoria. Quem aponta o dedo diz que era gente que não precisava; eu, bem ao invés, acho que quem teve “estômago” para tal dia fez bem em aproveitar os descontos imensos que se praticaram. Aprendi bem a lição de um destacado e abastado membro da Comunidade Portuguesa de Joanesburgo que, num dia de bastante frio (aqui também há disso…), saiu à rua para apanhar uma moeda de cinco cêntimos de Rand (cerca de meio cêntimo de Euro); quando por mim confrontado com a maçada inerente ao acto, com a sabedoria dos seus cabelos brancos, logo retorquiu: “sem cinco cêntimos não se faz um Rand!”…

Depois de uma jogada comercialmente brilhante e socialmente útil, fica uma declaração política deliciosa que deixou a extrema-esquerda em autêntica histeria, tal foi o protagonismo que roubou aos tradicionalmente irrazoáveis dizeres do 1 de Maio… Para o PCP e o BE, de certo, o pingo não foi doce, mas sim uma gota amarga…

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