quinta-feira, 22 de março de 2012

Kony e os bastidores do Marketing de Causas


Nas últimas semanas o nome Joseph Kony correu o Mundo e continua a dar muito que falar (não será por acaso que faz a capa da Time desta semana). Kony é um criminoso de guerra que durante anos liderou, no interior do Uganda, um grupo rebelde armado, usando crianças como soldados para espalhar o terror por aquele território, não tendo sido até à data julgado pelos crimes que perpetrou. Em face disso, a organização americana Invisible Children criou um vídeo de «caça ao homem» que se propagou à velocidade da luz e foi visto por mais de  80 milhões de pessoas em apenas duas semanas. A aparente estratégia era a de tornar Joseph Kony mundialmente conhecido e lograr a sua captura. Porém, já diz o povo que «nem tudo o que parece é». 

Se por um lado é interessante analisar este fenómeno e perceber como as redes sociais e plataformas como o Youtube podem ser hoje os novos média, com capacidade para pôr na agenda mundial questões a que ninguém fica indiferente, por outro cumpre analisar a forma como o fazem.

Desde logo o conteúdo do vídeo parece carecer de alguma actualidade e seriedade: segundo investigadores que há muito acompanham o conflito no norte do Uganda, Joseph Kony e os seus companheiros do Lord's Resistance Army deixaram o país em 2006 e desde então não mais se verificaram ataques da sua autoria naquela região. Crê-se que Joseph Kony e os membros do LRA se reduzem agora a menos de uma centena e actuam em território vizinho, na República Democrática do Congo e Sudão do Sul. As imagens que correm ao longo do vídeo têm mais de uma década e sustentam a dicotomia primária de «bons contra maus», simplificando a realidade do Uganda. Ignoram, por exemplo, que o próprio exército ugandês tem também a sua quota parte de responsabilidade no conflito que por ali lavra, tendo cometido ao longo do tempo uma vasta lista de atrocidades contra os civis que era suposto proteger. Mais, na década de 90 e já na primeira década do séc. XXI, foi o exército responsável pela deslocação forçada de aproximadamente um milhão e meio de pessoas para autênticos campos de concentração, onde escasseiam condições de vida e onde aquelas estavam mais expostas aos ataques.
 
Ora, e ao contrário do que nos convence o referido vídeo,  não estamos propriamente perante uma guerra de bons contra maus, estamos sim perante um conflito que não terá fim com a simples detenção de Joseph Kony. E tendo em conta a actuação do governo e das forças armadas do Ruanda, exímias no que toca a violação de direitos humanos, tomar a sua parte nesta causa também não parece muito certeiro... É, além do mais, estender a passadeira para mais violência pela mão dos exércitos do Uganda e do Congo...

No fundo, ao aumentar a pressão internacional e ao incitar a uma intervenção norte-americana, o grupo activista está a clamar por mais violência, concentrando os seus esforços na captura de um só criminoso e  esquecendo todos os danos colaterais do conflito na região, ignorando as necessidades das crianças e famílias que nele se viram envolvidas. Não há, assim, uma solução real apresentada pela Invisible Children.

Promover o envio de tropas americanas para o território apresenta-se somente como uma solução idealista para um problema de fundo. Sendo que não se pode ignorar que, à data do lançamento do vídeo, as tropas americanas já se encontravam no Uganda - desde o final de 2011 que por lá estão cerca de 100 militares. Obama justificou esta intervenção com a «promoção de interesses dos EUA de segurança nacional e política externa». Se Kony e o LRA não têm como alvo os americanos ou os interesses americanos, não fica muito clara a razão de ser deste súbito paternalismo. Uma coisa seria puxar do argumento «justiça internacional», mas dela não se ouviu falar...

Note-se, porém, que o envolvimento dos EUA no Uganda não é de agora, remonta aos anos 90, através do United States Africa Command (AFRICOM), que então auxiliou o exército ugandês. À data a neutralização do LRA parecia bem encaminhada, mas não só acabou por fracassar como pôs em risco as conversações de paz que se desenhavam. Disto não fala o vídeo Kony 2012, que negligencia as várias tentativas de negociação de paz entre 2006 e 2008, as quais levaram à já referida retirada do LRA do norte do Uganda.

O objectivo desta campanha parece assim esgotar-se na detenção de Joseph Kony e sequente apresentação perante o Tribunal Penal Internacional, que em 2005 emitiu mandatos de prisão para Kony e outros líderes da guerrilha, por acusações que vão desde o rapto de civis ao abuso de crianças. Ironicamente, esse é o palco internacional de Justiça que os EUA não reconhecem ou, pelo menos, entenderam não reconhecer ao não ratificar o Tratado de Roma que estabeleceu o TPI.

Assim, adensam-se as dúvidas quanto aos (reais) intuitos desta campanha e da concomitante intervenção dos EUA. As teorias mais rebuscadas apontam para interesses que coincidem com a recente descoberta de petróleo na região do lago Albert... 

É indiscutível que Joseph Kony deve ser levado a responder perante a Justiça pelos crimes contra a Humanidade que cometeu ao longo de décadas. Não obstante essa premissa, parece-me que neste processo se torna dispensável propaganda como a que a Invisible Children lançou, uma versão enviesada e redutora daquilo que se passa no continente africano, apelando ao emocional e menosprezando uma contextualização séria e fáctica destes conflitos na África Central.

Isto é tão grave que, precisamente na mesma semana em que Kony 2012 cegava meio mundo e usava aquele criminoso como bode expiatório de todos os males que afectam a região, morreram 30 civis em South Kivu, na República Democrática do Congo, vítimas - não do LRA - mas sim de milícias congolesas que operam na área. Mas disto não se ouviu falar. A espectacularidade de produções americanas tem outra repercussão nas massas, sobretudo porque a estas falta cada vez mais capacidade para questionar e aprofundar a informação que lhes é servida. Tratam-se das mesmas massas que têm como expoente máximo do seu activismo o botão «partilhar». E não é assim que vamos lá...

4 comentários:

Rita disse...

Obrigada por lançares luz sobre este tema.
Às vezes é difícil encontrar ou aprofundar informação porque é tanta e tão dispersa que torna qualquer busca numa tarefa imensa. E há o problema das fontes, nem sempre é fácil separar o trigo do joio.
Temos tanta informação disponível hoje em dia que é quase uma arte seleccionar o que ler.

Dulce disse...

Dizes bem, Rita... a informação é tanta e tão diversa que torna-se difícil filtrar o que é relevante e credível... Confesso que para escrever sobre esta matéria li imenso e predispus-me a perceber mais sobre o que é que efectivamente se passa no Uganda...

Se tiveres interesse em aprofundar sugiro estes dois artigos:

http://www.foreignaffairs.com/articles/137327/mareike-schomerus-tim-allen-and-koen-vlassenroot/kony-2012-and-the-prospects-for-change?page=show

http://www.foreignaffairs.com/articles/136673/mareike-schomerus-tim-allen-and-koen-vlassenroot/obama-takes-on-the-lra?page=show

Miss_PonyTail disse...

Oi!
não tinha a real noção do que se escondia por trás deste projecto (invisible children).
obrigada

X disse...

Vezes sem conta discuti este assunto com colegas/conhecidos. Este vídeo è a prova do pseudo activismo, è fácil ser activista de "gosto" no facebook como dizes no artig. Que o EUA são os policias do mundo todos sabemos, que ajudam quem mais tarde irão combater è fácil de ver, que enganam tolo/ignorantes e preguiçoso cidadãos que vão atrás de qualquer vídeo que apareça na net já è triste. Qualquer pessoa que leia a Foregn affairs, Guardian ou Telegraph, consegue perceber um pouco do verdadeiro e mais profundo problema que existe no Uganda, RDC,RCA...mas è bem mais fácil colocar "gosto" e seguir na ignorância. Tal como se fez no genocídio do Rwanda, quantos antes de acusarem o Utus se deram aotrabalho de perceber a divisões/afastamento étnico e cultural causado pelos Belgas, o mesmo com o Zimbabwe de Mugabe o Uganda de Amin. Desculpa a frontalidade Dulce mas sempre achei que para a maioria das pessoas Africa serve para ganhar prémios de fotos com crianças subnutridas e pra fingirem que se preocupam... prefiro errar que ficar inactivo, deteso gente que fica em.cima.do muro a fazer "like". Adorei irei artigo Dulce.