Ainda ao redor das Conferências do Estoril, para mim, permanece no meu espírito uma pergunta para as quais apenas obtive resposta parcial (designadamente, da parte de Tony Blair, a quem tive a oportunidade de a fazer directamente): na nova ordem ou desordem mundial, são os conceitos políticos globalizáveis? Estamos condenados a optar por um qualquer fundamentalismo ou pelo relativismo?
Vem isto, desde logo, a propósito da própria democracia, enquanto regime político. É exportável? Subsistiria um país com a dimensão e cultura da China a uma ocidentalização política? Em sentido contrário parece abonar a história contemporânea da Rússia, que depois do desmando da era Ieltsin – que retirou o Partido Comunista da sua posição de trave-mestra do sistema político – veio o período actual em que a “rédea curta” de Putin parece representar a tentativa de controlo do sistema político e do mercado russos e o combate a eventuais tendências centrífugas. Claro que em favor da bandeira democrática existe sempre a vibrante democracia indiana, mas um novo balde de água fria podia vir da “varanda do lado”, já que o Paquistão testa a “oportunidade” da escolha popular e dos direitos cívicos a cada atentado sofrido e em cada bala disparada contra os taliban.
Normalmente, uma resposta baseada meramente nos princípios seria afirmativa a este propósito. Todavia e como sabemos, muitas vezes são os próprios candidatos a “importador” que rejeitam “aventuras” democráticas, já que os interesses dos dominadores, não raras vezes, convivem mal com veleidades opinativas.
Surgem depois dois conceitos de ainda mais delicada filigrana: o conceito de ingerência humanitária, algo que a NATO invocou no Kosovo (mesmo ao arrepio da soberania sérvia), e a legítima defesa preventiva, que escorou a desastrada intervenção ordenada por George W. Bush no Iraque (e que chegou a convencer muita gente, de Durão Barroso e Aznar a este vosso criado…).
Nos dias que correm, há vozes que nos interpelam, dizendo que o Iraque, apesar dos grosseiros atropelos aos direitos humanos (sim, porque de democracia nem se falava) perpetrados por Saddam Hussein, estava mais estável e, com isso, mais calma estava a região… Um homem de princípios – como Blair – terá que responder que, em todo o caso e com o passar do tempo, as pessoas podem escolher e têm liberdade para determinar a sua vida e o rumo do país, sendo isso um ganho que justifica os sacrifícios relativos à intervenção militar e os custos presentes e inerentes à estabilização.
A principal pergunta sem resposta, isso sim, é a razão pela qual tudo isso acontece em alguns pontos do Globo e não noutros, como o Sudão e o Zimbabué. A mesma pergunta, aliás, que deve ter ocorrido aos timorenses, durante mais de vinte anos…
3 comentários:
Caro Gonçalo Capitao
De vez em quando passo pelo seu "blog". Permita que deixe um comentàrio.
A grande questao é a das condiçoes de produçao das riquezas e da sua partilha na nossa sociedade. Ora este problema não é tecnico... ele é essencialmente politico. Isto é, quem decide o que se produz, como se produz, e como se partilha.
A Historia Humana não é nada mais que a sucessão das formas de organizações sociais destinadas a responder a estas questões.
A questão da partilha da riqueza é e resta o verdadeiro problema de todas as sociedades desde a origem dos homens, e constitui a questão essencial do presente e do futuro.
O Ocidente, que representa menos de 20% da população mundial apodera-se de mais de 80% das riquezas materiais do planeta, mas dentro de 30 anos a sua população não ultrapassará 13% da população do globo.
O Ocidente tem medo da religião, isto é , do Islão, porque a população mussulmana está em pleno crescimento e representará dentro em pouco 40% da população mundial.
A Ásia e particularmente o Japão, também são receados pelo Ocidente, por causa do seu desenvolvimento tecnológico e económico, que se verifica sem imitação dos modelos ocidentais e sem adaptação aos seus valores.
Para um tipo de sociedade que escolheu de transformar tudo em MERCADORIA – Terra, natureza, água e a vida ela mesma -, que coloca o lucro e o consumismo como ideal supremo e acima de todo outro valor,( Blair e Aznar sao bons exemplos ), acima dos direitos humanos, da democracia, e do respeito do ambiente, podemos perguntar a nos mesmos se esta sociedade merece realmente de sobreviver.
Devemos interrogar-nos sobra a qualidade humana e moral deste tipo de sociedade. Ela representa simplesmente um insulto a tudo o que a humanidade através dos seus filósofos e homens da fé apregoaram , enquanto os economistas falharam mesmo naquilo que eles consideram como central – a finança.
Cumprimentos
Caro Freitas Pereira
Confesso que já estava com saudades dos seus comentários, informados, inteligentes e frontais.
Sei que estou a dever-lhe uma visita, mas enquanto não cumpro, eis o que posso ir dizendo...
1 - Claro que a distribuição da riqueza poderia ser mais justa. Porém, nos dias que correm, há dificuldade em encontrar interlocutores, em certos casos. Por exemplo, no Sudão, Zimbabué, Irão, Coreia do Norte, Birmânia e muitos outros países, que organização social encontramos? Mesmo os países islâmicos, como sabe, têm ditaduras várias... Acredita que um sistema político não democrático é economicamente justo?! Há "n" exemplos de sinal adverso.
2 - O medo do Islão pode ter sido irracionalmente espalhado, não há dúvida. Todavia, como também não ignora, correntes há que exploram esse medo, que cometem actos abomináveis e que, azar dos Távoras, fundam essa acção na religião. O que é o Wahabismo? Que outra coisa senão ódio espalhou Qutub?
3 - Onde já concordo consigo é quando diz que fomos longe demais na objectivização dos sujeitos e da sua esfera de direitos... Para isso até o mundo da múcia pop já vinha alertando (a música "Cais" dos GNR - de onde me veio a ideia para título do blogue - fala neste ir "longe demais").
Cumprimentos do amigo
GC
Caro Amigo
Não considero que sejam os países que mencionou que impedem a Terra de girar no bom sentido.
Não são eles que provocaram o desastre actual na nossa sociedade global.
Esses países são as escorias do colonialismo ou da descolonisaçao, do desmembramento dos impérios, abandonados às elites , por vezes educadas pelos mestres ocidentais, e que pretendem copiar estes últimos.
E outros, sim, libertaram-se du jugo dos ocidentais para cairem sob o jugo das religioes ou de filosofias ultrapassadas.
Abordamos nas mensagens precedentes o problema da partilha e da moral que deve presidir a essa partilha.
Quando se fala de moral, em política, e num regime democrático em particular, pensa-se antes de mais na integridade dos representantes eleitos pelo povo aos quais ele confiou o cuidado de exercer no seu nome o poder de governar.
A probidade, e sem duvida a honestidade “escrupulosa”, o desinteresse mais total são o mínimo esperado daqueles que detêm o poder em nome do povo.
Tenho ,a certeza de obter o seu acordo sobre o que precede, Caro Amigo Gonçalo.
A moral de que discutimos não é aquela dos homens de poder como indivíduos, mas daquela relativa às decisões políticas que eles tomam. Que Hitler e Staline, Mugabe, Alhimendjah ou outro ditador qualquer desses países que citou, tenham sido ou não homens íntegros, rectos, que se enriqueceram ou não pessoalmente, não é o que a historia reteve ou reterá da ditadura que eles impuseram aos povos deles.
Da mesma maneira pode-se conceber, e isso já o vimos, que um regime “democraticamente eleito”, tome decisões que chocam profundamente a moral ou mais exactamente esta parte da moral que se percebe como “universal”.
Um tal regime, sendo ainda um Estado de direito, eleito democraticamente e com a aprovação dos seus eleitores ou por via de referendo, poderia muito bem decidir, por exemplo de restabelecer a escravatura, utilizar a tortura, as regras da democracia, a soberania do povo.
ele seria politicamente integro e legitimo, mas inicuo e moralmente detestável.
Quero eu dizer com isto que o Estado de direito, a integridade política e moral dos dirigentes, a soberania do povo, a democracia, mostram aqui os seus limites.
Sente-se que acima destes valores, importantes certamente mas insuficientes, um principio superior em nome do qual ele é legitimo, e mesmo um dever, de se revoltar se ele for violado. Mesmo se é contra uma decisao democrática ou uma soberania popular.
Chamemo-lhe moral universal, Direitos do Homem, justiça natural ou imanente ou muito simplesmente equidade.
Um abraço e cá o esperamos!
Freitas Pereira
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