terça-feira, 4 de abril de 2006

Um mundo sem pipocas

A propósito de um filme (de certo muito comercial para que mereça aplauso da critica ou atenções de Hollywood) que está em cena, algumas interrogações podem levantar-se sobre a evolução das democracias ocidentais, sobretudo depois do 11 de Setembro, e em face da crescente “islamofobia” e outros temores afins.

A película em causa, de uma forma suficientemente “pop” para que seja acessível a todos (a tal democratização da cultura que já faz curso nos EUA, na Grã-Bretanha e até, pasme-se, em França, há alguns anos, e que a nossa esquerda continua a desdenhar, preferindo a “subsidiodependência”), aborda um cenário que, mesmo acreditando eu na durabilidade da democracia, não deixa de convidar, como disse, a algumas reflexões, começando, desde logo, e perante casos como o Irão (exemplo meu), pela ideia de que intervir em nome da democracia requer algumas cautelas. A primeira delas tem a ver com a “exportabilidade” do regime em causa. Escrevem inúmeros académicos que há requisitos, por exemplo cívicos e culturais, para que possamos abrir curso à democracia.

E, mesmo sublinhando que, em tese, a única religião incompatível com a democracia seria o hinduísmo (e, mesmo assim, a Índia é a maior democracia do mundo), mercê do sistema de castas, ficam, em certas partidas do globo, a faltar, entre outros requisitos, um sistema educativo aberto e o acesso a fontes alternativas de informação (pluralidade de media, entenda-se).

Acresce que, nas intervenções que visam o câmbio de regime, é necessário que se planeiem as intervenções tidas por imperiosas (não as tidas por imperiais, que são condenáveis), para que se não volte a verificar o caos social, étnico e religioso do Iraque. Fui dos que concordei com a intervenção, continuo a ver-lhe vantagens, mas não sabia (nem podia saber) que não fora feito um estudo do mosaico social que permitisse acautelar melhor o pós guerra.

Outro risco é o de o “choque de civilizações” popularizado por Huntington passar a realidade sob a forma de islamofobia.

Se é verdade que o ódio, a ignorância e o vilipêndio dos direitos humanos são estandartes de muitos países administrados confessionalmente, o facto é que, a Ocidente, alardeando-se maior grau de civilização, não pode pagar-se na mesma moeda e meter todos os muçulmanos no mesmo saco, fugindo do Corão como Drácula fugia da cruz.

A meu ver, e não sendo sociólogo, o problema é mesmo mais vasto e, dada a ruptura dos sistemas assistenciais das democracias demo-liberais e a insuficiência do mercado para corrigir sozinho as insuficiências que gera, os tempos de crise tendem a voltar os cidadãos contra o “estranho”, seja ele de Leste, de África ou do mundo islâmico (independentemente do país).

E é aqui - exactamente aqui – que pode grassar a mensagem extremista e populista. Com afloramentos em França (Le Pen), em Itália (alguns dos aliados de Berlusconi e Alessandra Mussolini) e em vários outros pontos da Europa, surgem movimentos políticos que culpam os “outros” pelos problemas de que os sistemas políticos e económicos (que são imperfeitos, como todas as construções humanas) padecem, designadamente ao nível das taxas de desemprego.

Os mesmos movimentos que, uma vez conquistado o poder, pedirão mais videovigilância, mais acesso a dados genéticos e mais parafernália tecnológica que permita aos governos ver e ouvir tudo o que se passa na vida de cada um.

Usadas pelas democracias estáveis (como é o caso de Portugal), prerrogativas como instalar câmaras de vigilância em locais públicos, fazer escutas telefónicas fiscalizadas por juízes ou constituir bases de dados genéticos são benéficas e podem melhor a vida democrática.

O Problema é que, a deteriorar-se muito mais o nível da classe política e a agravarem-se os problemas sociais que despontam (em parte por causa da primeira premissa), as ferramentas em causa podem mudar de mãos e, nesse caso, o filme passará a “novela", e os problemas já não poderão ser resolvidos com pipocas...

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