Imagine um país cujos recursos trouxeram mais sangue que desenvolvimento, imagine um país desorganizado ao ponto de a fibra óptica chegar antes do saneamento básico, imagine um país cujas desigualdades chocariam o mais insensível dos homens, imagine um país que apesar de tudo isto é pura e simplesmente fantástico. Não encontraria melhor forma de descrever Angola que conheci em Agosto passado, juntamente com o Diogo Gaspar e outros dez jovens, quando estive neste país pela primeira vez numa missão de voluntariado.
O mês que passei em Angola foi sem sombra de dúvida a melhor e mais marcante experiência dos meus curtos 19 anos. Angola marcou-me de diferentes formas, marcou-me pela coexistência de bairros de lata com imponentes mansões, de esgostos a céu aberto com carros blindados em Luanda, marcou-me pela beleza natural da foz do rio Kuanza, das cascatas de Calandula e das suas imensas planícies mas marcou-me sobretudo pelas pessoas conheci no Luau. Uma pequena cidade fronteiriça onde durante três semanas ajudei a montar uma biblioteca, a única no raio de centenas de quilómetros e a melhorar, dentro do possível, a formação dos professores primários da região.
Os angolanos que conheci ali não me ensinaram os grandes tratados da física ou da química, não me explicaram a infinitude do universo e muito menos as razões da minha existência mas mostraram-me uma forma completamente diferente de viver a vida e olhar o mundo. O sofrimento e as privações a que estas pessoas estão sujeitas vê-se nas expressões das mulheres mais velhas, no olhar das crianças ou mesmo nos cânticos que entoam nas missas. O que é surpreendente é que mesmo depois de terem sido discriminadas durante o colonialismo, de terem passado por uma terrível guerra civil e de se verem sujeitas às imposições de um estado profundamente manipulador e corrupto, estas pessoas conseguem sorrir e exteriorizar uma alegria sem paralelo, como que marginalizando todas as aspirações que aos olhos de um ocidental parecem indispensáveis, sejam elas uma carreira de sucesso ou um bom ordenado.
Nunca me esquecerei do respeito e da gratidão que estas pessoas demonstraram por mim de uma forma completamente espontânea, revogando qualquer sentimento de rancor ou raiva que julgava existir face aos portugueses. Da mesma forma que guardarei sempre na memória, a abertura com que os padres da missão católica do Luau me receberam mesmo sabendo do meu agnosticismo e o empenho e dedicação ímpares que colocam no trabalho que fazem para melhorar as condições de vida daquela comunidade.
Angola, não obstante todos os seus recursos e potencialidades, é um país que necessita de ser ajudado para que o desenvolvimento chegue a quem realmente necessita dele. No entanto, as missões de voluntariado não podem constituir a única forma de canalizar esta ajuda, é imprescindível que os nossos empresários e governantes colaborem não compactuando com os vícios do estado angolano, exigindo mudanças para que de uma forma gradual haja uma efectiva democratização quer do sistema político quer da distribuição da riqueza e do desenvolvimento.
p.s. shindelle quer dizer “branco” em tchokwe, a língua falada na província do Mochico, onde se insere a cidade do Luau. A foto foi tirada durante a viagem.
8 comentários:
A realidade nua e crua,num Pais que podia proporcionar outras condições a todos os que lá vivem......Luau que saudade daquela pequena povoação,onde estive 5 anos,se tiver fotos que queira partilhar agradeceria imenso,pois é sempre maravilhoso recordar África e principalmente a Terra onde vivi a minha juventude.Obrig.
Valeu a pena esperar :)
O relato enternece qualquer um e a fotografia é a cereja no topo do bolo.
E a vossa experiência... um motivo de orgulho para o Lodo! :)
Agora que por Angola andam cerca de 100 mil novos habitantes lusos (!!), espera-se que estes participem activamente no seu processo de democratização...
PS - Indo de encontro ao primeiro comentário, também eu gostava que partilhasses aqui mais fotos... (bem sei que eu já as vi, mas os fiéis ao Lodo ainda não...)
Terei todo gosto em partilhar mais fotos, fica para breve a publicação de mais algumas.
Obrigado pela apreciação Dulce, acho foram necessários estes meses todos de distanciamento para poder relatar a experiência.
E se a memória não me atraiçoa,a foto é tirada em cima duma das famosas locomotivas a vapor do Caminho Ferro a Vapor,existe um site com memórias do Luau (http://luauangola.multiply.com/)mas fotos recentes,seria uma alegria para muitos,Também partilho do feito do Padre Joaquim por aquelas terras,a todos os niveis louvável.........um obrigado por fazer recordar a terra onde nascemos,e vivemos,muitos e bons anos..........
Relato tocante e há muito aguardado!...
Porém, temo que os nossos políticos e empresários pouco estejam a fazer para forçar o regime a democratizar-se. Bem ao invés, o que se ouve por cá são mil e um conselhos sobre a forma de "entrar" no mundo dos negócios de Angola.
Porém, como ensinam as lições de Ghandi, Luther King e Mandela, a solução é persistir, mesmo quando a marcha parece em vão...
É difícil descrever uma ida a África sem recorrer a expressões que soem a lugares comuns – seja pelo olhar daqueles que falam com o saudosismo do Império (em relatos legítimos, dadas as circunstâncias História); ou por aqueles que conhecem o continente pela primeira vez. A enumeração torna-se quase sempre previsível: as cores, a terra, as vozes, a felicidade, as crianças (como essa que salta em cima de um vagão abandonado do Caminho de Ferro de Benguela, ou as que corriam a gritar 'chindele' atrás dos jipes). Podia assinar por baixo este texto, pois também a mim me surpreendeu a extraordinária hospitalidade e a abertura cultural dos angolanos, que no fundo, nos aproxima enquanto povos. Agostinho da Silva defendia e acreditava (quase misticamente) nessa união, não para o caso específico de Angola, mas sim de Portugal com todos os países da lusofonia. A Globalização tem nos levado a isso mas, em Angola, sem fazer com que a enorme criação de riqueza se traduza em desenvolvimento efectivo e bem-estar. Espero sinceramente que, tanto o estabelecimento local de portugueses já falado, bem como a intensificação das relações com as organizações civis intermédias (Igreja e ONGDs), façam por uma maior cooperação, pois não vejo líderes políticos capazes de, só por si, fazer a transformação do país (por mais cimeiras que façam e papéis que assinem). Do que vi fiquei sensibilizado, é inegável o trabalho da missão católica do Luau (cujos responsáveis mostram bem que há mais Igreja para além de Roma).
Uma experiência única num sítio único!
Os sorrisos genuínos de quem pouco (ou nada) tem, o ar quente, as noites mágicas, as cores que se sentem...
Difícil pôr tudo por palavras mas fácil de regressar em memória ao Luau, de reviver a música e a alegria daquela gente que tanto nos marcou!
Resta acreditar - e lutar - para que se operem mudanças, para que o discurso e a postura do poder público se alterem, para que a sociedade civil se comece a organizar e a tomar parte do papel decisivo que pode e deve ter.
Acredito sinceramente que, todos, podemos fazer por isso.
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