quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Calcados no Cáucaso

Que Mikhail Saakashvili, Presidente da Geórgia tem queda para a aventura, eu já sabia, dadas as declarações nacionalistas e pró-ocidentais e o feitio com genética soviética (demonstrado na supressão de manifestações avessas), numa espécie de cocktail Este-Oeste em formato indigente.

O que desconhecia era que o Presidente georgiano somava a tudo isso ingenuidade, pois não vejo o assalto militar à Ossétia do Sul se não como uma idiota crença de que o “amigo americano” viria em auxílio da mocinha Geórgia, como nos filmes de Cowboys, ou de que a “Mãe Rússia” passara a ter medo da diplomacia ocidental e dos media.

Vamos por partes: se olharmos, de forma pura e simples, para o Direito, a Ossétia do Sul – tal como a Abecásia – são regiões da Geórgia. Porém, olhando à realidade (ou, se preferirmos, à Ciência Política), limamos conceitos e chegamos à ideia de quase-Estados ou Estados de facto.
Se o Estado é algo que se alicerça em elementos físicos (território, população e governo) e jurídicos (a soberania e a personalidade jurídica), aqueles que a ele aspiram contam, quase sempre, com o apoio de países vizinhos nas suas aspirações e assim vão ganhando personificação.

Indo a casos concretos, por volta de 2004 estive, entre outras paragens da linda Geórgia (recomendo um périplo pelo país, da paisagem à gastronomia, sem esquecer a hospitalidade, que é do melhor que já vi nas 46 bandeiras que já olhei), na cidade de Gori (a cidade natal de Estaline e agora ocupada pelos militares russos) e já daí não passavam as forças armadas georgianas. Dito de outro modo, na cidade que ainda tem a Avenida Estaline, uma gigante estátua do “Zé dos Bigodes” e um museu a ele consagrado (inclusive com a carruagem de comboio que o terá levado a Potsdam) terminava a soberania efectiva da Geórgia. Em Tskhinvali (Ossétia do Sul) como em Soukhoumi (capital da Abecásia), o desejo de ver os georgianos a milhas é o mesmo, aliás. E nem se arrisca muito se apostarmos que também em Moscovo o “tiro” ao georgiano (ao menos, em termos de discriminação) seja modalidade quase olímpica, já que os media russos alinham na diabolização dos ex-camaradas caucasianos e as autoridades iniciaram a deportação daqueles que não tenham a “papelada” em ordem…

De igual modo, em 2007, na Transnístria (caso idêntico, mas sito na Moldávia), pude ver que existiam forças armadas, governo e moeda (rublo da Transnístria) próprios e uma população que, maioritariamente, se recusava a ser moldava (optando pelas nacionalidades ucraniana e russa). E, também nesse Estado de facto – que ainda usa a foice e o martelo e espalha pelas ruas estátuas de Lenine – os blindados russos estão nas pontes, suponho, como “forças de manutenção da paz”…

Ou seja, na Ossétia do Sul – como na Abecásia, na Transnístria, em Nagorno-Karabagh (no Azerbeijão) e na Somalilândia (Somália) – há realidades que, há muito, vão além do simples “copy/paste” dos manuais e sebentas de Direito Internacional. Nos Estados de facto apenas falta sobretudo o elemento formal (e essencial) do reconhecimento internacional.

Acresce que os países ocidentais tiveram, a meu ver, a chamada “ideia de jerico” ao tolerarem os entusiasmos albaneses no Kosovo. Era de prever que se abrisse um precedente (disse-o, na altura) e que fossemos confrontados com a nossa hipocrisia, tendo que andar com meias tintas em casos que não favoreçam o eixo euro-atlântico, como sucede no espaço da ex-URSS. Aquele território sérvio reclama identidade étnica divergente. Pois bem, e que dizer da Ossétia do Sul e da Transnístria?! A ver vamos, se o reconhecimento formal crismar o Estado kosovar.

Houve massacres no Kosovo?! No início da década de 90, os blindados de Chisinau (capital moldava) entraram em Bendery (Tighina para os moldavos) e abriram fogo, causando muitas vítimas… O que muda?!...

Mais era de prever o apoio da Rússia, ante a ânsia de George W. Bush em expandir a NATO para as fronteiras daquele país. A ideia do escudo anti-míssil na Polónia e na República Checa e de alargar a NATO à Geórgia e à Ucrânia (embora os apoios em Kiev diminuam de dia para dia, deixando o Presidente Iuschenko em lençóis cada vez menos aprazíveis) pode ser muito simpática para os aliados do Uncle Sam, mas só cegueira política é que pode fazer pensar que, em termos geoestratégicos, é ilegítima ou surpreendente uma resposta do país dos czares.

Sem ânsia imperial – apenas, isso sim, visando recuperar a solidez interna e o orgulho externo dos russos – a Rússia de hoje recupera músculo (voltando a fortalecer as suas forças armadas, a autoridade do Estado face a oligarcas e cidadãos comuns) e mostra energia (os vastos recursos naturais dão-lhe apreciável vantagem diplomática, numa altura de alta dos preços do gás e do petróleo), permitindo ao seu Presidente, Dmitry Medvedev, anunciar uma “resposta esmagadora” a quem tentar outra vez matar cidadãos russos ou ameaçar os seus interesses.

Claro que, de permeio, está a questão dos oleodutos que visam contornar o território e a soberania russos, como é o caso do Oleoduto BTC [Baku (Azerbeijão) – Tbilissi (Geórgia) – Ceyhan (Turquia)]… É óbvio que o atoleiro em que os EUA estão no Iraque ajuda ao “cantar de galo” russo… Parece lógico que EUA e Rússia venham a ceder reciprocamente, se virmos que em cima da mesa estão questões como o Irão (onde os russos poupam Ahmadinejad, a troco de venda de equipamento nuclear) e o Paquistão (agora sem o amigo de Washington, Pervez Musharraf, que se demitiu da presidência)… Não é difícil de crer que os russos também não floreiem muito mais a retórica, dado que atrás da Abecácia, da Ossétia do Sul e da Transnístria pode vir a Chechénia…

No meio de tudo isto, todavia, a Rússia já não age com a pose de urso desajeitado que ainda marcou a era Ieltsin. Desde Putin que tomadas de posse, hinos e paradas militares voltaram a servir para unir vontades e catalisar emoções e, assim, não espanta que, enquanto o Presidente (também ele apenas “de Direito”, ousaria dizer) Medvedev aquecia as orelhas a Ocidente, no Cáucaso, o Primeiro-Ministro Putin confortava as vítimas da agressão vinda de Tbilissi… Enquanto isso, os media russos comparavam Saakashvili a Hitler, tal como o faziam cibernautas que arrasaram sítios virtuais das entidades oficiais georgianas, como aquele que o parlamento tinha na Internet.

Idiotas dos que julgarem que a mão do mágico que mais importa é a que está à vista… Sem Rússia forte é manco o tabuleiro do xadrez internacional.

A novela caucasiana segue dentro de momentos…


Nota: a fotografia é da praça central de Gori, o tipo da estátua é essa estimável criatura que se dava pelo nome de Estaline, e foi tirada aqui pelo "Zézinho"

Sem comentários: