Entre os meus vícios – nos quais nunca se encontrou o de fumar (viva a Lei !!!) – está o de ver cinema, indo às ditas salas.
Todavia, se há coisa que nunca faço é guiar-me pelas muito letradas prosas dos críticos de cinema que justificam a sua existência e os seus vencimentos, por vezes, fazendo interpretações que nem os realizadores sonharam, apontarem falhas na colocação de uma câmara, que ninguém nota e por compararem os mais intragáveis filmes a obras primas do cinema checo, búlgaro, sueco ou do, salvo honrosas excepções, maçador cinema francês de autor da década de 60 ou 70…
Vamos ver se nos entendemos: quando colaborei na elaboração da chamada Lei do Cinema (que creio prever, em grande medida, o que esta maioria aprovou, embora confesse que não conheço o texto da nova Lei) parti de alguns pressupostos basilares, no actual cenário nacional: desde logo, há que democratizar a fruição dos bens culturais, levando o maior número possível a ver nem que seja um bocadinho de produção intelectual – dito de outro modo, no fraquinho “O Crime do Padre Amaro”, além do manifesto aerodinamismo de Soraia Chaves, sempre fica a ideia da tentação de todo e qualquer ser humano.
Depois, entendo que, dada a miserável parcela do Orçamento de Estado que sempre se reserva para a Cultura (uma vergonha e a clara prova da falta de visão da maioria da nossa classe política), entendo que, não sufocando as chamadas primeiras obras e o cinema experimental e/ou de autor, é imperioso ligar os apoios à receita de bilheteira; ou seja, deve apoia-se quem, por muito “pop” que seja, consiga comunicar com os nossos concidadãos, levando-os a sair de casa ou, pelo menos, a ligar o leitor de dvd – e, dito isto, sublinho que sei bem o que digo, escusando os anónimos parasitas que gostam de receber sem prestar contas (como se tivéssemos que apoiar coisas para serem fruídas pelos autores e pelos amigos, em sessões de contestação ao mesmo poder a quem estendem a mão, regularmente) de se dar ao trabalho de redigir impropérios; tive até o privilégio de ter pública divergência sobre o assunto, entre outros, com Eduardo Prado Coelho, que sabia o que dizia, por muito que não me lembre de, alguma vez, ter concordado com ele.
É com este estado de alma que vos reafirmo que me parece que muitos críticos de cinema – exceptuo, por exemplo, os comentários que vejo na televisão (audiências, a quanto obrigam os nosso “intelectuais” de profissão…) – têm de afirmar a sua diferença, desdenhando o que pode cativar muitos dos seus pares e aclamando o que só uma licenciatura na área das artes, uma personalidade muito alternativa ou uma valente inalação de substâncias plantáveis pode fazer apreciar.
Pego em dois exemplos que – que inculto me confesso, pelo menos, a julgar pelos padrões dos nosso “cultos” de serviço – podem ilustrar o que penso: “Call Girl” e “O Assassínio de Jess James pelo Cobarde Robert Ford”.
O primeiro filme, realizado por António Pedro Vasconcelos, tem, entre outras, a vantagem de retratar com alguma qualidade muito do submundo da nossa política, como costumamos ouvir falar dele (e, já agora, dos meandros futebolísticos). A mais disso, boas interpretações (Soraia incluída, desta vez) e a superação do trauma causado pelo paupérrimo “Corrupção”.
Já o segundo propõe uma lentíssima e quase psicanalítica abordagem da forma como um bandido (Jess James, interpretado – e bem – por Brad Pitt) ganha uma aura lendária ao ponto de ser odiado quem o assassinou pelas costas, naquilo que pode ser uma das primeiras “fabricações” de imagem pública da história recente.
O primeiro filme vê-se com agrado (nem que seja apenas numa abordagem “leve”, pelos episódios satíricos), o segundo exige reflexão, contemplação e nem por isso assegura, a meu ver, uma reflexão cívica mais importante do que aquela que a podridão realista de “Call Girl” nos convida a fazer. O primeiro têm a classificação de “medíocre”, num diário de referência; o segundo oscila entre “bom” e “muito bom”…
Sendo que a opinião é livre, o que me aborrece é que podiam ser os agentes culturais a ajudar a trazer os nosso políticos de volta para o “mundo real”. Porém, ao falarem de coisas que as pessoas não entenderão ou não estão disponíveis para fruir, optam por manter uma elite que se auto-sustenta e auto-contenta, em tertúlias em que “povo não entra”. Morreram e ninguém lhes disse...
A imagem foi "gamada" a um genial desconhecido (para mim)...
2 comentários:
Partilho da mesma indignação quanto às sempre injustas e disparatadas classificações dos pseudo-críticos de cinema. Salvo raras excepções, são insensatos e pretensiosos.
Aliás, confesso que muitas vezes me guio pelas suas críticas de forma inversa: os filmes com pior classificação são os que coloco como prioritários; só depois vêm aqueles que os ditos consagram como obras primas, e que geralmente não passam de películas enfadonhas, que pouco ou nada acrescentam ao espectador comum e que tampouco o levam a meditar.
Diz o Gonçalo:
“ (...) deve apoiar-se quem, por muito “pop” que seja, consiga comunicar com os nossos concidadãos, levando-os a sair de casa ou, pelo menos, a ligar o leitor de dvd (...)”
Subscrevo inteiramente.
E isto pode aplicar-se de igual modo a uma discussão recente que surgiu aqui no Lodo a propósito de jornais gratuitos e literatura light.
Na mesma linha de raciocínio, instigar um português médio a ler Tolstoi ou G. Garcia Marquez quando está habituado a digerir pouco mais que o Correio da Manhã, é ... digamos que'contranatura'. Porquê obrigá-lo a digerir um requintado prato de escargots à moda de Bourgogne quando ele só sabe apreciar caracoletas da tasca?
Aparentemente o produto é o mesmo, mas difere no conteúdo e no método de consumo. E se não o sabe consumir, nem tão pouco dar valor a tal iguaria, de nada lhe vale o esforço de deglutir.
Daí que reconheça (e valorize) o espaço da literatura light no nosso Portugal.
Preferível, a meu ver, uma pessoa ler com entusiasmo um livro de conteúdo mais soft que instá-la a ler (simplesmente 'por ler') um clássico da literatura que, no seu caso, nada lhe acrescentará.
Por fim, realçar o oportuno que é relembrar (mais uma vez) a falta de políticas culturais deste país. Isabel Pires de Lima que se cuide, agora que se prevê uma remodelação no Governo e não há meio da ministra mostrar trabalho...
O Museu Berardo enche a vista, mas há muito mais para além disso. Já era hora, por ex., de diminuir o IVA aplicado a CD’s e DVD’s – não é só uma questão de facilitar acesso aos bens culturais, mas também de minorar males que proliferam, como o caso da pirataria, por ex.
O teu comentário e a relação que estabeleces com a aparente contradição em relação ao que escrevi no teu texto sobre jornais "light" são, como esperava, muito inteligentes.
Porém, faço alguma distinção entre filmes - que vejo como entretimento, na sua esmagadora maioria - e leitura, mormente a de jornais.
O desenvolvimento intelectual derivado da leitura é, de acordo com autores como G.Sartori, bem diverso do proporcionado pelo audiovisual. Em certos casos, há quem diga mesmo que os novos conteúdos chegam a propiciar um retrocesso na capacidade de abstrair.
Já quanto a ler jornais - dizem outros autores - falamos de um indicador de envolvimento cívico, dada a natureza do que se lê.
Ou seja, quem busca um jornal fá-lo porque (ainda) quer envolver-se na polis, sendo conveniente que seja bem municiado e possa desenvolver a sua arquitectura cognitiva com segurança.~
No cinema confesso que sou menos exigente, embora haja que pensar... Por exemplo, a trilogia "Matrix" já foi apontada por adolescentes como motivação de crimes que chegam ao homicídio.
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