Alguém devia explicar a George W. Bush que a política internacional não é nem um atlas para colorir nem o mesmo que jogar “Socom” (basicamente, um jogo em que tropas especiais americanas desempenham missões de intervenção não autorizada em países soberanos), na PlayStation.
Confesso sem problemas que fui dos que acreditou que a intervenção no Iraque fora suficientemente estudada, algo que o pós-guerra veio desmentir fragorosa e dramaticamente. Não que com isto haja aderido ao pacóvio e cínico pacifismo da extrema-esquerda, mas serviu-me, com certeza, para começar a olhar com cautela a actual liderança do “mundo livre”.
Se de confirmação precisasse o meu cepticismo, a deslocação do Presidente dos EUA à Albânia deu-me motivos para me fazer recear mais asneiras, mormente no que às declarações sobre o Kosovo diz respeito.
Bush disse aos albaneses que deviam olhar a província Sérvia de maioria étnica albanesa como independente.
Perguntará: e daí?!
Pois bem, vamos a isso. Em primeiro lugar, sublinho, como já fiz noutra ocasião que falamos de uma terra que os sérvios consideram o berço da sua Nação, com todo o drama que uma eventual secessão pode acarretar para a idiossincrasia do orgulhoso povo sérvio. E ainda que circunstancialmente seja ocupada por uma maioria não sérvia, imaginemos que uma comunidade determinada ganhava maioria na Amadora ou, pior, que um surto de imigração tornava Guimarães numa terra de português “adocicado” ou de sons de Leste. Sem que haja na hipótese ponta de xenofobia (garanto que vejo com bons olhos as comunidades estrangeiras que tanto ajudam a nossa Economia), como lhe tocaria a ideia de aplicar a estas terras o princípio da autodeterminação, sem mais debate?
Por outro lado, cumpre pensar se haveria tanto interesse de Washington, se a defesa da independência do território kosovar não servisse para humilhar um ex-adversário de guerra e um país de inclinação a Leste, que tem nos russos bons amigos. Por que não defende com a mesma veemência uma intervenção no Darfur, em Taipe, no Tibete, em Aceh ou mesmo na Palestina? Pragmatismo e arrogância, digo eu.
Porém, em terceiro lugar, nem sequer creio que, mesmo usando do pragmatismo e do cinismo tão típicos das relações internacionais, Bush esteja certo, já que deveria ter estudado as lições da cruzada no Afeganistão (ridícula mas também eloquentemente ilustrada pelo filme “Rambo III”), na qual os americanos não descansaram enquanto não expulsaram a URSS, assim pondo fim à laicização do território, que é hoje um alfobre de tráfico de droga e de fundamentalismo. Implantar no seio da Europa mais uma bandeira islâmica, na mesma altura em que o número de excluídos da globalização aumenta, pode ser uma “barraca” que cumprirá à União Europeia resolver.
Para os que tenham dúvidas sobre o que pode acontecer, recomendo uma viagem não organizada por uma agência de viagens à Albânia que, recordo, oferece a maioria que habita o Kosovo. Não que não seja boa gente, mas convirá que se “perca” pelo País das Águias e perceba o seu complicado mosaico social (o eufemismo é deliberado).
Por fim, convirá que reconheçamos que os sérvios estão a pagar o preço dos seus excessos nos conflitos que se sucederam ao fim da Jugoslávia, embora com mais juros dos que os que castigam croatas e muçulmanos, sem que haja santos neste “filme”. Mas, mesmo admitindo que a Sérvia possa ter sido a parte mais abusadora, terá o seu povo que perder o seu centro de identidade nacional?
Não tendo remédio imediato para o caso, entendo que comícios de George W. em Tirana não acrescentam nada de positivo. Vale que a inteligência de Putin vai permitindo ganhar tempo até que os americanos elejam alguém que retire àquele os comandos da consola de jogos, pela qual parece ter tomado a política que se faz a partir da Sala Oval.
4 comentários:
Dois pontos prévios:
1. ter mais uma bandeira islâmica na Europa não é argumento nem contra nem favor da independência.
2. Em Pristina (onde estive há mais de um ano) só se sente o desejo de independência.
Dito isto: Putin esteve muito bem ao afirmar que o princípio base do direito internacional é o da integridade territorial dos Estados e não o direito à autodeterminação. Este último foi usado (com base na Carta da ONU) para a libertar os povos colonizados. Não é caso dos albaneses do Kosovo. E tem razão Putin, porque a inversão do princípio é uma caixa de Pandora de consequências imprevisíveis, em muitos Estados. Começando pela vizinha Espanha, à Itália, e terminando nos povos do Cáucaso russo. Para já não esquecer as fronteiras artificiais de África, desenhadas em 1885 em Berlim.
A partir da intervenção da NATO na ex-Jugoslàvia, sob comando Americano, intervenção tornada necessária pelos crimes da política de Belgrado, era de prever que os USA aproveitariam esta oportunidade para criar pontos de apoio nesta região.
Pelas razoes já expostas pelo meu Amigo Gonçalo:- cercar o ex-inimigo soviético de bases militares, desequilibra-lo profundamente a partir das ex-republicas da URSS ávidas de liberdade mas também de ajuda financeira e desejosas de integrar a Europa. Pois que a NATO para estes países é um bom trampolim para realizar estes objectivos, os USA não tiveram dificuldade nenhuma para obter a autorização para instalar as bases militares actuais e as futuras.
O problema com os USA é que muito rapidamente, a partir duma ajuda económica concedida, o objectivo habitual de dominação aparece por trás desta acção humanitária.
As bases militares da Roménia e da Turquia não satisfazendo a estratégia global US, a implantação dos mísseis na Polónia, aliado fiel, e dos radares na Chéquia, foi mais um passo nesta direcção.
A reacção humorística de Putin oferecendo aos Americanos a utilização da base de controlo radar do Azerbaijão em comum, em vez da Polónia e da Tchéquia, mais não é que uma diversão do profundo ressentimento sentido pelo projecto de Bush.
O que é grave no que concerne o discurso de Bush em Tirana é que este pretende acordar as outras republicas ex-soviéticas, Abkasia,Chéchénia, Ossécia e Karabakh, onde o discurso sobre a independência foi devidamente interpretado.
Mas isto é um jogo perigoso, na medida em que precisamente por causa da situação nestas ex-republicas da URSS, Putin utilizará o veto no Conselho de Segurança da ONU no momento oportuno, para impedir a independência do Kosovo, quanto mais não seja para manifestar uma vez mais a sua lealdade para com a Sérvia ortodoxa.
Aliás, este problema do Kosovo é seguido com muita atenção pelo governo Austríaco, onde existe também uma forte minoria Húngara com veleidades de independência.Sem falar dos outros candidatos por essa Europa fora, mesmo perto das nossas fronteiras.
O discurso de Bush, como de costume, não visa mais que a defesa dos seus próprios interesses, mesmo se os defende mal, como a sua forte pressão para que a UE aceite a Turquia , seu aliado na NATO, sem tomar em conta o que quer que seja dos problemas que esta adesão criaria para os Europeus.
Estou por isso completamente de acordo com este “post”. G.Bush é um campeão para tornar os problemas mais complicados quando lhes toca. A Nova Europa cara a Rumsfeld recebeu um golpe fatal com este discurso de Tirana e pior ainda com a ideia dos mísseis na Polónia e na Chéquia. Basta ler o “Washington Post” sobre esta decisão tomada pelo Pentágono, antes mesmo do Departamento do Estado a ter devidamente estudado:-
“Quando fizermos o balanço da política estrangeira de G.Bush, vamos constatar que os estragos causados ao Velho Continente arriscam-se a ser tão graves como os infligidos ao Iraque”.
Caro André
Quando me refiro a uma bandeira muçulmana, percebeu muito bem que a religião não é para mim requisito de soberania.
Todavia, não creio que possamos subestimar o efeito que isso terá nas aspirações de outras minorias religiosas ou sequer esquecer o perigo de radicalização que sempre há nas repúblicas islâmicas.
Por exemplo, recentemente, estive no Tajiquistão, onde o Presidente está a engavetar a constituição para excluir os seus prévios aliados muçulmanos, dada a tendência radical que começa a soprar na brisa que vem do vizinho Afeganistão.
Caro Freitas Pereira
Creio que estamos os 3 de acordo ao reconhecermos a arte de Putin no xadrez internacional.
Aliás, sempre fui daqueles que reconheceu a Moscovo um papel equilibrador do sistema de relações internacionais, mesmo antes da URSS.
Espero que o próximo presidente dos EUA seja menos autista e que consiga tirar a atenção de Pristina com os mesmos pézinhos de lã com que se tem esquecido de Taipé.
De parabéns estão os albaneses! Vi, hoje, nas notícias que, comovido pelos aplausos do povo de Tirana (depois de enxovalhado em Itália), George W. foi para as ruas cumprimentar os populares e alguém lhe roubou o relógio!
Tivera ele cérebro e se calhar também ía...
Finalmento consigo ler alguma informação sobre a visita de Bush à Albania em que o "fait-diver" do relógio é relegado para segundo plano. De qualquer forma, desilude-te Gonçalo porque parece mesmo que não foi roubado e que W. Bush o guardou a tempo...
Sobre o tema em análise, confesso que não tenho conhecimento suficiente da situação para a abordar com a profundidade dos outros intervenientes. Aquilo que desejo é que este processo se desenvolva da forma mais pacífica e civilizada possível.
Do que li no post e comentários subsequentes, parece-me que nem Bush nem Putin estão muito preocupados com o eventual direito à autodeterminação do Kosovo ou com a precupação Sérvia em manter o seu "berço" integrado no seu território. Cada um está mais preocupado com a sua estratégia e em saber qual o desenlace que mais lhe trará a ganhar...
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