Sobre a manifestação que, há mais ou menos uma semana, teve lugar em Santa Comba Dão, apetece-me dizer que revela bem o grau de atavismo que ainda tem a nossa vida social e política.
De um lado, uns jovens palermas de braço em riste, homenageando ideologias que já não voltam, e gente com idade para ter juízo, gritando o nome do prof. Salazar, como se ele fosse candidato ao que quer que seja, tirando uma distinção televisiva.
Sobre o tema de base já escrevi em vários fora, propugnando que se percam os estúpidos complexos da esquerda “abrilista” no que à abordagem da nossa História contemporânea diz respeito. Assim como quem não viveu o 25 de Abril deve aceitar as coisas boas que dele resultaram (a começar, por exemplo, na liberdade de escrever o artigo que agora se publica) e os desvarios pós-revolucionários que, entre outras parvoíces, delapidaram as finanças públicas e humilharam gente de bem (que o digam alguns professores da Universidade de Coimbra), todos devemos viver com o que de mau e de bom (e não foi pouco, até ao final da II Guerra Mundial) o Estado Novo teve em si.
Repito, a propósito, um dos exemplos que mais me impressionou: o Museu Militar austríaco, em Viena, dedica uma secção muito bem organizada ao holocausto causado pelos nazis. Hitler, rezam as crónicas, era austríaco e deambulou por Viena, pelo que impressiona a forma como por lá se lida com um monstro que não pode dar azo sequer à menor comparação com Salazar, sem que isso torne este num santo homem.
Num plano diverso, quem vá a Kiev pode visitar o Museu de Chernobyl (embora o dito não seja fácil de encontrar, mesmo para os taxistas…) e ficar impressionado não só com a dimensão da tragédia, mas também com a forma assumida e pedagógica como os ucranianos lidam com aquilo que, já não há dúvidas, foi um erro de concepção de uma central nuclear soviética que, desde logo, não previa todos os mecanismos de segurança possíveis, por razões economicistas.
O mesmo, digo eu, pode e deve fazer-se em relação ao Estado Novo e à memória do Professor de Santa Comba: organizar um museu pedagógico (pelo que, para não ser uma coisa incipiente, devem celebra-se protocolos, por exemplo com a Universidade de Coimbra e com a Torre do Tombo) que fale do que de certo e de errado se fez naqueles tempos.
Já passaram mais de 30 anos sobre o 25 de Abril, sendo altura de vencer os complexos e a propaganda de uma esquerda incapaz de renovar as suas bandeiras, e isto sem que deva esquecer-se a memória dos que foram vitimados pelo Regime. Eu acho, bem ao contrário dos manifestantes “anti-fascistas” (já escrevi também que o que houve em Portugal só generalizando ou por ignorância pode designar-se por fascismo), que o dito museu pode, preservando património relevante, servir para relembrar os erros e as vítimas dos mesmos, a par dos sucessos e dos que julgaram servir a Pátria (acredito que, por vias erradas, tenha sido esse o desiderato do prof. Salazar, entre muitos outros dignitários da II República).
O que já me parece a raiar a palhaçada, como disse no início desta prosa, é o comportamento de parte dos manifestantes que saíram à rua, no penúltimo fim-de-semana.
Por um lado, a iniciativa não pode servir para glorificar António de Oliveira Salazar, sem discutir ambos os lados da sua actuação. Fazê-lo recorda-me da ocasião em que visitei Gori, na Geórgia. Trata-se, nem mais nem menos, da terra natal de Estaline, onde a avenida principal ainda tem o seu nome, uma praça central ostenta uma enorme estátua do cruel governante soviético (cfr. fotografia) e o museu que lhe é dedicado se limita a mostrar recordações do ditador, como as casas que habitou na infância (transladadas) e a carruagem de comboio que o levou a Potsdam. Creio que é nesta falta de espírito crítico que não podemos incorrer, em Santa Comba Dão, sem que, mais uma vez, veja a menor possibilidade de comparar Salazar, neste caso, a Estaline.
Pelo lado dos manifestantes que desfilaram de cravo em punho, descontada a provocação descarada às gentes locais (que, aliás, entendo que só funcionou contra os primeiros, se a ideia era que se não fizesse o museu) e eventuais casos de sofrimento pessoal ou familiar, parece-me que a tentativa de branquear a História recente denota, ela sim, tiques de estalinismo serôdio e saudosismo do sonho pós-Abril de instaurar uma ditadura marxista-leninista em Portugal, que o PCP alimentou (antes de começarem com as aleivosias contra o que digo, recordo apenas aos mais fanáticos que, já em 1991, os comunistas portugueses foram dos poucos que se solidarizaram com o golpe que visava depor Gorbatchev, e que foi encabeçado por Ghennadi Ianaev, com a oposição bem sucedida de Ieltsin).Nisto como noutros assuntos sensiveis, há que defender a objectividade e o rigor cientifico, vogando para o futuro, em vez de regressar ao passado...
3 comentários:
Post muito equilibrado, como seria de esperar, colocando a sensatez acima de emoções artificiais e destituídas de fundamento.
Não obstante, considero que os "cravistas" que foram a Sta. Comba Dão foram os primeiros responsáveis pela confusão, dado que tiveram uma iniciativa claramente provocatória e que só serviu para acirrar os ânimos.
Quanto à esquerda portuguesa, ela não muda nunca, ainda agarrada aos "valores republicanos" da caótica I República e ao mito da luta anti-fascista. Para não ir mais longe nem mais à esquerda, basta recordar a lamentável campanha eleitoral de Mário Soares em 2005/06, que passou grande parte do tempo a falar de Salazar. Diriam mesmo que, tal como os regionalistas foram os maiores coveiros da regionalização em 1998, a esquerda é a maior promotora de Oliveira Salazar na actualidade.
100% de acordo!...
Eu também gostaria de ver o estojo de barba do Salazar!
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