terça-feira, 23 de janeiro de 2007

As nossas razões*

Dulce Alves (SIM)
"Até há bem pouco tempo não tinha as ideias tão claras quanto desejava no que respeita a este tema. Mas sempre tive uma certeza: abomino a prática de aborto, excepto nos casos legalmente previstos. Primeiro porque o acto de abortar é, sob o meu ponto de vista, intrinsecamente negativo, nocivo, violento e desumano e daí, reprovável. Depois porque esta intervenção anti-natura é tudo menos saudável, acarretando os seus perigos clínicos. E por fim, porque vai contra os meus mais elementares princípios, mas estes, reconheço que só a mim me dizem respeito.
Contudo, no referendo de dia 11, votarei a favor da despenalização. Essencialmente, porque reconheço que, seja este acto mais ou menos negativo, mais ou menos condenável, é um acto de índole privada, que tem que ver com os princípios e convicções éticas, morais, políticas e/ou religiosas de cada um. E sendo um acto privado, (que só à mulher - e respectivo companheiro - que o leva a cabo diz respeito), que não afecta nenhum direito de terceiro, o seu comportamento não deve ser penalmente punível, até porque isso põe em causa a sua autodeterminação, a liberdade individual e o direito à privacidade.
Depois, porque mais aterrador que ter noção do que representa o acto de abortar e da taxa de incidência dessa prática neste país... é ter noção do submundo que a ela está associada. Das caves, das garagens e dos locais sombrios onde os lobbys da prática de aborto recebem milhares de mulheres portuguesas e remediam o seu "problema" de forma clandestina, insegura e ilegal. E aí, o que poderia ser somente um problema de consciência e moralidade... passa a ser um grave problema de saúde pública que, inevitavelmente, diz respeito a todos.
A despenalização não é a solução, é certo. Mas torna este mal "menor". Contudo, seja ou não aprovada no próximo dia 11, importa lembrar a quem de direito que urgem políticas eficazes de planeamento familiar e uma educação sexual acessível e sem clichés, baseada na transmissão de valores e na comunicação sem tabus. Sem isto, a despenalização da IVG, a luta contra o aborto e tudo o mais, não faz qualquer sentido. ".

Gonçalo Capitão (SIM)
"Apoiando a causa do sim, sou, na realidade, contra o aborto, já que entendo que nenhuma mulher deveria ser levada a tomar essa decisão.
Todavia, a verdade é que devem ser raros os casos de mulheres que queiram fazer um aborto e o não façam, ficando apenas por saber o grau de dignidade humana e a segurança com que o fazem, o que depende dos recursos financeiros e informativos que possuem.
Por isso, sou favorável à despenalização da IVG, mas apenas na base de um plano de contingência que vise enfrentar o flagelo do aborto clandestino.
Paralelamente, creio que devemos seguir por um caminho de prevenção sério e sem hipocrisias, como as que alimentam alguns sectores sociais que levantam supostos pudores, sonegam informação (evitando uma política de saúde sexual e reprodutiva digna desse nome) e ainda têm distintíssima lata de se opor à despenalização do aborto.
O ponto ideal seria aquele em que ninguém tivesse de fazer um aborto, fosse por ter meios para criar um filho, por não haver mais gravidezes não desejadas ou por existir um sistema de acolhimento e adopção condigno. Mas, até lá...".
João Pedro Cruz (NÃO)
"O referendo sobre a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). O assunto é em si demasiado importante para se divagar sobre ele.Talvez neste referendo a minha irreverência me aconselhe a defender o "Sim"… mas a minha consciência irá sempre apontar para o "Não"… Para justificar a minha posição (pessoal) sobre este assunto, focarei neste texto apenas 3pontos: actuação, clandestinidade e futuro…
Em 98, no último referendo sobre a despenalização do IVG, tive dúvidas. Estas inquietaram-me antes da votação. Mas esta agitação mental, tornou-se pior após a votação. Julgo que caímos (o Estado) num vazio no que respeita à interpretação dos resultados e na passagem do "papel para a acção". Não era este o resultado prático que as pessoas que votaram "Não" pretendiam. Mesmo assim entendo, que a solução não estava no voto do "Sim".
Também acho que é uma falsa questão achar que com a despenalização da IVG, se inviabilizam os "abortos clandestinos"… talvez este facto fosse mais claro para a opinião pública, se o partido do governo o esclarecesse e não quisesse a todo o custo a vitória do "Sim".
Caso vença o "Sim", podemos cair no "absurdo" de a IVG começar a ser considerada como mais um "elemento contraceptivo". Se este cenário é demasiado recente para ser considerado real, então e no futuro?... e o inicio da "guerra" da concorrência e das clínicas privadas? E os lucros?
Não pretendo tratar este assunto como do domínio político. Julgo tratar-se de uma questão pessoal… e não tenho intenção de fazer "campanha" pela posição que vou tomar.
Vou votar no NÃO e dedico o meu voto ao meu filho João de 6 meses.".
RICARDO BAPTISTA LEITE (NÃO)
1. Sou contra a realização do Referendo.
2. Sou contra a lei vigente.
3. Sou contra a lei proposta no referendo.
4. Por isso, voto NÃO.
1. Sou contra a realização do referendo por dois motivos fundamentais:
- Primeiro porque radicaliza as posições (senão veja-se o slogan do partido socialista: “Abstenção = Prisão”!!!);
- Segundo porque é relativamente consensual na sociedade Portuguesa que ninguém quer ver uma mulher condenada a pena de prisão por ter interrompido voluntariamente a sua gravidez. Logo, nessa medida, competia ao partido do Governo e com maioria na Assembleia da República, entenda-se o Partido Socialista, a missão de proceder a essa mudança na lei na própria Assembleia da República, evitando um referendo inútil que apenas servirá para atrasar uma efectiva resolução do problema vigente.
2. Sou contra a lei vigente por vários motivos:
- Primeiro, a lei actual prevê pena de prisão para a mulher grávida que der consentimento ao aborto praticado por terceiro, ou que, por facto próprio ou alheio, se fizer abortar. Como já referi, a pena de prisão não faz sentido e não preciso do resultado do referendo para tomar consciência disso mesmo;
- Segundo, a Lei vigente consagra situações em que a interrupção da gravidez não é punível. No entanto, na prática (no terreno!), são dramáticas as dificuldades encontradas ao tentar obter o atestado médico que certifique a verificação dessas mesmas circunstâncias; Esta realidade surge sobretudo quando está em causa a interrupção da gravidez por indicação terapêutica, na medida em que a lei não enumera de forma clara quais são esses critérios clínicos. Um exemplo: Uma mulher com uma insuficiência renal crónica grave tem um risco de 5% de vir a perder a sua restante função renal caso leve a gravidez a termo. Deve esta situação ser considerada suficiente para interromper a gravidez? À luz da lei actual, a resposta é sim. No entanto, na prática, poucos serão os médicos dispostos a atestar esta situação pelo receio de, um dia, a interpretação da história clínica poder ser diferente em tribunal. Urge, portanto, proceder a uma criteriosa identificação das situações clínicas a considerar, sempre à luz dos conhecimentos actuais. Para as eventuais situações que não sejam enunciadas numa reformulação da lei, deveria ser consagrada a possibilidade da criação de uma junta médica que, judicialmente, tenha o poder de determinar que se possa realizar uma interrupção da gravidez por indicação terapêutica.
- Terceiro, a lei actual não consagra de forma clara os critérios de saúde mental em que, à luz da lei, se pode realizar a interrupção da gravidez (referindo-se apenas à interrupção não punível caso seja o “único meio de remover o perigo de morte ou de grave e irreversível lesão… para a saúde… psíquica da mulher grávida”). Também neste aspecto, a clarificação dos critérios clínicos é uma necessidade para assegurar a aplicação prática da lei.
3. No entanto, apesar das deficiências da actual lei, sou fervorosamente contra a lei que se propõe para esta matéria, caso vença o “sim” no referendo do próximo dia 11. Sou contra a proposta de lei porque, caso venha a ser aplicada na prática:
- Primeiro, uma mulher que interrompa a gravidez às 10 semanas e um dia continua a estar sujeita a uma pena de prisão.
- Segundo, uma mulher que interrompa a gravidez, mesmo antes das 10 semanas (!), continua a estar sujeita a uma pena de prisão caso se realize num estabelecimento de saúde que não seja legalmente autorizado.
- Por fim, o argumento das questões económicas tem sido muitas vezes evocado por quem entende que o aborto deva ser liberalizado. Será que quem usa este argumento compreende aquilo que está a pedir ao Estado Português? Ao invés de exigirem que o estado apoie financeiramente uma política de natalidade, ou seja, que dêem as ditas condições para que a mãe possa ter o desejado filho, estão a pedir que o estado financie a prática do aborto como método alternativo (!!!). Não aceito que o governo se demita das suas responsabilidades, ainda por cima coarctando a liberdade das mulheres em situação precária.
4. Dito isto, o voto no NÃO é o único capaz de gerar as condições que assegurem a resolução prática da problemática legal em torno do aborto, por via de uma reforma da lei actual, tendo em conta os aspectos acima referidos. Qualquer outro caminho dará origem a um cenário que não resolve os problemas de base e que será sempre, a posteriori, de difícil resolução, senão mesmo irreversível.
Por isso, voto NÃO.
*Post publicado em: Assim NÃO
Ricardo Cândido (SIM)
"Ninguém é a favor do aborto, principalmente quem o pratica, parece-me.
O aborto não é uma decisão primária face a uma gravidez indesejada, mas sim a última oportunidade de resolução dessa situação. Não creio, como muitos por aí pregam, que com a despenalização este será banalizado, porque, como sabemos, fazer um aborto não é a mesma coisa que devolver um artigo no supermercado.
No entanto, o que aqui está em causa é a revogação de um artigo do Código Penal. Os partidários do NÃO entendem que quem interrompe uma gravidez (independentemente do motivo) deve ser penalizado.
A verdade é que, toda a gente sabe que são feitos abortos e estes até são socialmente bem aceites. Se assim não fosse, não haveria uma passividade generalizada das autoridades competentes.
A vitória do NÃO é um incentivo ao crescimento de um mercado de abortos clandestinos, onde condições mínimas de higiene e salubridade estarão apenas ao alcance de alguns e o maior ou menos risco de vida da mulher dependerá da economia familiar. Sendo este um problema transversal a toda a sociedade, convém não escamotear que as classes sociais mais baixas são as mais afectadas.
Face à interpelação a que seremos sujeitos, se as mulheres que pratiquem um aborto devem ser penalmente responsabilizadas, eu digo que não, e é por isso mesmo que votarei SIM no referendo.".
Rita de Matos Oliveira (NÃO)
"Voto não. Pela vida.
Porque há vida desde a concepção. Sabes que aos 20 dias o coração já bate? E que entre a 8.ª e a 9.ª semana o coração está formado, realizando as suas funções definitivas?
Porque o aborto não é solução. Porque é que o Estado não apoia as mães que querem ter os filhos? Numa sondagem realizada pelo Centro de Sondagens da Universidade Católica a 5 de Dezembro de 2006, à pergunta "Se estivesse grávida e atravessasse um momento de dificuldade ou dúvida sobre a sua gravidez ou maternidade, desejaria..." 75,6% das mulheres entrevistadas respondeu que desejaria ser ajudada e apoiada a manter a gravidez e poder ter o bebé contra apenas 13,5% que preferia ser livre para abortar sem que tal fosse considerado crime! O Estado nada faz para apoiar as mulheres que querem ser mães. Nos últimos meses inclusive reduziu os apoios às instituições que se dedicam a essa tarefa. Instituições essas, maioritariamente ligadas à Igreja Católica, e/ou sustentadas através do voluntariado. Fica aqui um rol de mais de 50 instituições que apoiam as mães e os bebés: http://www.vidascomvida.org/index.php?option=com_wrapper&Itemid=36
O que está em causa é um valor fundamental, superior a carreiras académicas, manutenção do status quo ou condições socio-económicas. Trata-se da Civilização, da Humanidade, da VIDA!".
Rosa Moreto (SIM)
"Sou a favor da VIDA e quero deixar isso bem claro. É que nos dias de hoje parece que ser a favor da despenalização é o mesmo que ser a favor da IVG…mas que ideia tão absurda! De facto este é um assunto bastante delicado e controverso, não sendo por isso fácil tomar uma decisão de voto para este referendo. Compreendo os argumentos de parte a parte, apesar de não concordar com todos. No entanto a questão central está a ser tapada com a questão de “ser ou não a favor do aborto”. Sinceramente, quem é que de facto pode dizer que é a favor de algo tão penoso para quem toma tal decisão? Penso que será antes uma opção vista como a única solução para muitas mulheres e homens (apesar de na minha opinião a IVG não ser solução para nada). Confusos? Eu sei que a minha opinião baralha, mas vou ser mais específica dando um exemplo concreto e usando a linguagem do momento. Eu nunca faria um aborto, mas se uma amiga optasse por fazê-lo, mesmo depois dos meus argumentos, eu não acharia justo vê-la atrás das grades. Simples, directa e não preciso de mais para ser a favor da despenalização. No entanto realço a minha posição anti-IVG. ".
* Os pequenos textos (dispostos por ordem alfabética) visam dar o nosso modesto contributo cívico para o debate que precede o referendo sobre a despenalização da IVG. Apesar de todos terem tomado posição (cfr. sondagem), nem todos os membros do "lodo" tiveram ocasião de explicar os seus motivos. Se o vierem a fazer em tempo útil, este post será editado para o efeito.

13 comentários:

Rita disse...

Louvo esta iniciativa do Comité Central do Lodo e gostaria de acrescentar, face aos comentários dos meus colegas que a despenalização já é real, uma vez que há mais de 30 anos que nenhuma mulher é presa em Portugal por ter realizado um aborto. O que vamos votar, na realidade, é a sua liberalização, vide as declarações do Ministro da Saúde e do Primeiro-Ministro sobre o assunto. Chamo à atenção que as mulher julgadas em 2004 tinham praticado aborto em bebés com mais de 10 semanas de gestação...

Dulce disse...

Rita,

De facto nenhuma mulher foi presa por ter recorrido à IVG.
Mas algumas delas foram constítuidas arguidas e ainda que não tenham sido condenadas judicialmente, sofreram a humilhação e condenação na praça pública, o que com certeza agudizou o seu sofrimento...

Quanto à terminologia à volta do referendo, a verdade é que, ainda que de forma "mascarada", a palavra-chave da consulta popular do dia 11 é «despenalização».
É facto que se fosse essa a vontade - tão e somente a de despenalizar - bastaria proceder a uma revisão da lei penal e introduzir uma espécie de "estado de necessidade desculpante" que não previsse a aplicação de pena às mulheres que recorreram à IVG. (De resto esta foi uma ideia lançada por Freitas do Amaral há algum tempo, mas que foi ignorada por meio mundo...)
Só que neste caso, a não liberalização permitiria que continuasse a subsistir o execrável "lobby do aborto"...

A meu ver, e como venho dizendo, a liberalização não resolve. Mas atenua as problemáticas inerentes a esta prática.
Infelizmente, somos um povo assim... do "remediar" em vez de prevenir. Mas a meu ver, antes remediar que continuar a ignorar...

Gonçalo Capitão disse...

Rita,

Liberalizado está o aborto e da pior forma: liberalismo clandestino e selvagem!
Em segundo lugar, se o que se pretende defender é uma vida autónoma (tenho dúvidas de que devamos considerar a questão a partir daqui), então creio que devem defender a prisão, sem apelo nem agravo. Creio que é algo curiosa a proposta do prof. Freitas do Amaral, já que decepar uma vida é homicidio! E homicidio pede prisão.
É por essas e por outras que não coloco a questão assim, preferindo uma solução que lide com uma realidade trágica, ao mesmo passo que se trabalha para medidas, designadamente, ao nivel da prevenção que reduzem drasticamente o número de IVG. O problema é que andaram todos a dormir, com falsos pudores e com receio que a Igreja os excomungasse se, por exemplo, insistissem na difusão da contracepção.

Gonçalo Capitão disse...

Tomo a liberdade de abusar, mas reproduzo aqui o texto de uma declaração de voto, que redigi com o auxílio do, então, Presidente da JSD (nessa qualidade o convidei, aliás, a ser o primeiro subscritor), e que entreguei na Assembleia da República, em 2004.
A meu ver, permanece válida, como à data. Foi subscrita por 17 deputados do PSD.

"Os Deputados subscritores desta declaração de voto votaram esta matéria em conformidade com o Grupo Parlamentar do PSD por entenderem que, mormente num tempo em que a credibilização dos políticos tem sido apanágio da maioria parlamentar, honrar a palavra dada deve ser o ex-libris daqueles que ocupam lugares públicos.

Fazemo-lo a dois títulos: em primeiro lugar, honrando a palavra dada, em Fevereiro de 2002, pelo, então, líder do PPD/PSD e actual Primeiro-Ministro Dr. José Manuel Durão Barroso, no sentido de que a questão abordada em 1998, a interrupção voluntária da gravidez, não fosse senão revista pela mesma forma referendária, o que, aliás, é uma forma de demonstrar o mais vivo apreço pelo povo português, não usando um expediente politicamente possível mas moralmente ilegítimo para contrariar legislativamente o resultado de um debate que, num passado próximo, se entendeu dever ser dirimido pelo voto de todos os nossos concidadãos.

Em segundo lugar, fazemo-lo por entendermos que as consultas referendárias são um momento magno da auscultação democrática que não deve ser banalizado, e que deve permitir períodos latos de aferição do sentir ético-jurídico da nossa Comunidade nacional.
Porém, a questão subjacente permanece cortante: deve ou não despenalizar-se a interrupção voluntária da gravidez?
A resposta afirmativa é aquela que dão Deputados que são denodadamente contrários ao aborto, sendo que o aparente paradoxo se dilucida dizendo que a mais censurável das atitudes será a contrária: a de esconder a realidade com um biombo de dogmas que não permitam atalhar as diversas constatações práticas (aquelas que se pedem a quem consagra o seu tempo à política).
Respeitamos inapelavelmente quem, convictamente, seja adverso à nossa perspectiva e, de facto, mantemos intacta a convicção de que a ideia de interromper um processo conducente a uma vida humana, excepção feita à previsão normativa do Código Penal, é, em si, a pior das opções. Todavia, estão os Deputados subscritores conscientes de que, salvo casos excepcionais, só não interrompe a gravidez quem não quer, restando saber as condições humanas, sanitárias e até emocionais em que o faz.

Acresce que falhou, até hoje, a dissuasão.

Assim, e esperançosos de que a proposta decaia por inutilidade superveniente (isto é, por não mais existirem mulheres que desejam interromper a gravidez), mas também seguros de que ninguém o fará de forma leviana, estamos em crer que a despenalização da interrupção voluntária da gravidez é uma medida penhor de várias justificações: por um lado, oferecendo condições dignas e medicamente seguras a mulheres que, as mais das vezes, recorrem a amadores e a técnicas arcaicas, com consequências irreparáveis no foro físico e emocional. Por outro lado, esta seria também uma forma de combater o vil negócio que gente sem escrúpulos faz em torno da interrupção voluntária da gravidez, remetendo para o sistema da saúde, um acto que, respeitadas as situações de objecção de consciência, passará a ser realizado nas maiores condições de segurança, mesmo por quem, hoje, não tem as posses que permitam recorrer à prestação destes cuidados médicos no estrangeiro.

Ademais, o contacto com profissionais especializados de várias valências pode, em si, dissuadir a mulher de recorrer à interrupção voluntária da gravidez, aconselhada que será, em relação ao acto, às suas consequências e às alternativas existentes.

Em quarto lugar, surge a consciência de que a técnica evoluiu de tal modo que a interrupção voluntária da gravidez pode hoje, desde que realizada por profissionais avalizados, ser levada a cabo com
a segurança devida.

Depois, assiste-nos ainda a certeza de que, em certos casos residuais e por muito que se agilizem os mecanismos de adopção, o recém-nascido abandonado é a grande vítima, por muito que se preguem outras doutrinas e prometam soluções.

Por fim, parece-nos seguro um avanço já debatido: jamais as mulheres que abortam devem ser privadas da sua liberdade.

Estas reflexões, repetimo-lo, mais não são do que uma solução de contingência que não precludem um combate feroz a todas as causas que conduzem à interrupção voluntária da gravidez, sejam elas meramente sociais, ou também criminais, posto o que realçamos ainda o facto de no tempo que passou, desde 1998 até hoje, muito pouco ter sido feito para evitar o elevado número de abortos clandestinos que ainda ocorrem em Portugal.

Uma política de saúde sexual e reprodutiva deve assentar em três pilares essenciais: informação, formação e acesso a meios contraceptivos.
É essencialmente aqui que temos falhado e as estatísticas assim o demonstram.

Pretender-se-ia, assim, na informação - garantir a informação à população, nomeadamente aos mais jovens, para evitar situações de risco e prevenir situações indesejadas.

Na formação - implementar a efectiva concretização das áreas curriculares para promoção de vida saudável, e acções formativas para a sociedade em geral, garantindo a vivência plena e saudável da sexualidade de cada indivíduo.

No acesso - possibilitar o acesso a toda a população através dos serviços de saúde e da rede pública de farmácias a meios contraceptivos.

Por tudo isto, entendemos que este debate tem já algo de muito positivo: o projecto de resolução n.º 225/IX, que vem de encontro ao combate às diversas causas que levam ao recurso à interrupção voluntária da gravidez, podendo assim este ser substancialmente reduzido. A sua apresentação é um sinal muito claro, cabe ao Governo a sua implementação em concreto.
Estamos certos deste passo, pois todos sabemos que manter a actual situação é insustentável, pelo que temos de deixar um lamento pela forma como a esquerda no seu todo tentou partidarizar uma questão que só teria a ganhar se fosse debatida sem protagonismos.

Votamos solidariamente com o nosso Grupo Parlamentar cientes de que as medidas a montante, e um plano de contingência a jusante, urgem em matéria da interrupção voluntária da gravidez.".

Rita disse...

Dulce,

As mulheres que foram julgadas, voltariam a sê-lo caso o sim ganhasse porque abortaram os bebés com mais de 10 semanas de gestação.
No que toca à terminologia usada e àquilo que realmente está em causa - despenalização/ liberalização - tu própria explicas o engodo que se criou. Defende-se uma bandeira socialmente aceite para levar avante uma premissa muito mais discutível.
No que toca à capacidade de remediar dos portugueses, parece-me bem que se trata mais de desresponsabilizar os lusos já de si pouco dados a responsabilidades. Ora, se nos Centros de Saúde as pílulas contraceptivas são disponibilizadas gratuitamente; se os preservativos são disponibilizados gratuitamente; se até já está disponível por míseros 4 euros a pílula do dia seguinte, quem não quer ou pode ter filhos que desculpa é que tem para engravidar? Qual é a necessidade de tornar legal a opção mais radical? É falta de responsabilidade. Mais, e aproveito também para responder ao Gonçalo, os abortos clandestinos não vão terminar. Em Espanha aumentaram para o triplo! Qual é a mulher que quer que fique na sua ficha clínica que fez um aborto?
É minha opinião que esta lei, caso passe no referendo, não vai mudar nada para melhor. E os abortos vão continuar a ser feitos em vão.

Gonçalo,

Imediatamente após a concepção as células do embrião começam a multiplicar-se, e dado que aos 20 dias de gestação, o coração já bate, parece-me que a questão de vida autónoma não se coloca, é uma realidade. O argumento de que o embrião fora do útero não sobreviveria sozinho não me parece razoável, uma vez que se deixarmos uma criança de 5 anos sozinha, se não lhe dermos comida, afecto e cuidados primários, ela também não sobrevive...
No que toca à necessidade de prevenção, estou 100% de acordo, só acho que a prevenção pode ser feita sem a prática do aborto ser liberalizada.
A seringada final na Igreja era dispensável, até porque se alguém neste país tem feito alguma coisa pelas jovens grávidas e pobres que querem ser mães, esse alguém é a Igreja Católica através de inúmeras instituições de acolhimento espalhadas um pouco por todo o país. Recebem as mulheres, nalguns casos as crianças, dão-lhes casa, apoio médico, afecto e possibilidade de estudarem ou trabalharem depois da gravidez, usando um sistema de solidariedade dentro da instituição.
Se o estado apostasse realmente na prevenção e apoiasse mais estas instituições a liberalização do aborto tornar-se-ia uma questão sem significado.

Marta Rocha disse...

Ricardo Leite disse: "(...)competia ao partido do Governo e com maioria na Assembleia da República, entenda-se o Partido Socialista, a missão de proceder a essa mudança na lei na própria Assembleia da República, evitando um referendo inútil que apenas servirá para atrasar uma efectiva resolução do problema vigente".
Estaria de acordo, se não tivesse já sido feita uma consulta popular, onde prevaleceu o "Não". Para que o Governo pudesse hoje alterar a lei, era imperativo que se procedesse a novo referendo. Inútil foi o primeiro. Este é necessário.

Gonçalo Capitão disse...

Rita

A questão é que o embrião merece protecção jurídica, mas não a tutela dispensada a uma pessoa humana, como a mãe, em meu entender (e de muita doutrina jurídica, aliás vertida no Código Penal; se o embrião fosse "pessoa humana" as excepções previstas seriam homicídio...).

Quanto à Igreja, e como já vou nos 35, pedia-te que me deixasses ser juiz do que quero ou não quero dizer (tal qual como eu respeito, e muito, a tua opinião). A verdade é que acolhem e amparam, e calar-me-iam se conseguissem acorrer à maioria dos casos de abandono (mesmo quando conseguem, muitas vezes, a resposta é insuficiente, como se prova no caso das Oficinas de S. José, que se concluiu, no caso do homicidio do transsexual do Porto, não terem capacidade para a resposta que, com a melhor das intenções, querem dar). Porém, as crianças "indesejadas" que têm acolhimento são uma minoria (e sê-lo-ão, porque a tradição cívica portuguesa é uma nulidade, comparada com a britânica, por exemplo), e menos serão as que beneficiarão dos louváveis cuidados, designadamente, de uma "Ajuda de Berço" ou afim.
E quanto à Igreja, insisto: acho quase sádico que se continue com reservas em relação à contracepção e que se ignore que a sexualidade começa, hoje, muito mais cedo, perante a maré de gravidezes indesejadas e o tsunami de HIV, no mundo!
Nada de pessoal, mas permite-me que decida pagar o preço, como sempre fiz, daquilo que penso e digo. ;)

Ricardo Baptista Leite disse...

Marta,

Se bem que é verdade que houve um referendo, também não é menos verdade que o resultado desse referendo não foi vinculativo. Mais lhe digo, se o Partido Socialista apresentasse uma proposta que visasse a eliminação da pena de prisão para a mulher que interrompeu a gravidez, duvido, sinceramente, que o Partido Social Democrata votasse contra. Trata-se de uma questão de bom senso.
Como tal não foi feito, vamos agora para nova consulta popular que, caso vença o sim, a mulher que interrompa a gravidez às 10 semanas e um dia, ou que a pratique fora de um estabelecimento de saúde autorizado em território nacional, continua a estar sujeita à pena de prisão. Ponto.

Marta Rocha disse...

É um facto que o referendo sobre a IVG em 1998 não foi vinculativo. Mas ainda assim, foi feito, por se tratar de uma matéria de interesse nacional. Por ser fundamental ouvir a "voz" do povo. E a resposta, ainda que não vinculativa, foi "Não". Foi essa a vontade soberana da população, mesmo não tendo sido da maioria. Foi da maioria que se pronunciou. E isto tem de ter uma leitura.
Ora, se o referendo é o mais legítimo instrumento democrático, parece-me que ignorá-lo seria um gesto de arbitrariedade insustentável.

Não sei se o PSD votaria a favor, mas para o caso pouco importa. É bom o senso, mas não é constitucionalmente coerente.
Para o país fazer nova consulta popular pressupõe um atraso(um custo de cerca de 10 milhões de euros!), mas é absolutamente necessária. É uma questão de interpretação da Constituição, prudência e respeito pelas instituições.

Quanto ao facto de que a partir das 10semanas e 1dia já é crime novamente. Passam-se situações semelhantes no direito fiscal. Por exemplo, se o benefício para o infractor for inferior a certo montante não há crime, se for superior, já há. É preciso estabelecer fronteiras e tem de haver rigor. A lei é mesmo assim, "retalha a realidade e o bom senso, mas a Lei pode fazê-lo!"

Rita disse...

Gonçalo,

Só lamento que à Igreja tudo seja pedido. É insuficiente, pois é, tomara que não fosse. Mas o que a Igreja faz, fá-lo porque está na sua natureza, é conforme aos valores que defende, não porque seja sua obrigação. Obrigação é do estado e este não faz o que lhe compete. Lamento que à Igreja tanto seja exigido e tão pouco reconhecido.

Gonçalo Capitão disse...

Ricardo,

Às 10 semanas e um dia dá prisão, mas com algumas observações:

1- era bom que os defensores do pudor como muitos dos que defendem o "não" - Presidente do PSD incluido - assumissem que, em qualquer situação à margem da lei, defendem a prisão. Se é vida que se protege, o crime chama-se homicidio, e a única hipótese é defenderem, com coragem e sem rodeios, que é de prisão a pena que adequada (não é ficarem calados cada vez que os juizes, na sua humanidade e bom senso, são obrigados a fazerem "ginástica mental" para não encarcerarem as mulheres).

2- como em tudo na vida tem de se encontrar um prazo, uma idade...
Porquê maioridade aos 18 e não aos 17 e 1/2?
Porquê reforma aos 65 e não aos 66?
Ao que julgo saber, o feto não tem ainda autonomia às 10 semanas, por muito que possa ter sensações, acrescendo que é um prazo razoável para a mulher se aperceber de que está grávida e pensar no assunto.

3- mas não entro sequer em ciência. Para mim a questão resume-se a um plano de contingência, dando segurança a algo que é mesmo feito e nem sempre em condições condignas. O ideal será criar condições para que ninguém queira ou necessite da IVG.

4- repito: a única coisa em jogo no referendo é saber se, até às 10 semanas, a mulher que o faça, naquelas condições, deve ou não ser presa.

5- acho que este post está a cumprir magnificamente os seus objectivos: debate e mais debate :)

Maria Manuel disse...

Ainda assim e atentos a todas as razões éticas subjacentes, vide o parecer n.º 19/CNECV/97 cujas razões de fundo se mantêm actuais, penso que em nome da Liberdade Sexual, da Vida, do Direito e Dever à Saúde numa lógica de responsabilidade não devem os actos penalmente definidos como puníveis deixar de ser responsabilizados. Despenalizar é remover pena, mas há outras formas de punir que não a pena de prisão. Além do mais e por muito que se diga a pena maior é aquela que as mulheres sofrem na praça pública e na sua auto condenação. Tudo o demais é relativo.

Sara Gonçalves Brito disse...

De facto este tema é tudo menos político e o debate aqui exposto é a tradução disso mesmo.
Eu voto não! Para mim a vida é um valor supremo e por isso nada nem ninguém poderá violá-lo. Depois o aborto, para além de cruel, parece-me ser para elites e desta lei resulta que continuará a se-lo. Mais, uma lei em que só preveja a autonomia da mulher é caprichosa e injusta e se o aborto não é legal obviamente haverá a humilhação de ir a um Tribunal como o há para qualquer criminoso que cometa qualquer tipo de crime. Despenalizar só porque existem mulheres a faze-lo e clinicas a enriquecer não é, na minha opinião, um argumento forte no sentido de que vejo a vida como maxime de tudo e do todo.
Penso, no entanto que a minha posição será curiosa na medida em que eu admito e aceito todos os argumentos do Sim e até sei que para a maioria dos "despenalizadores" o aborto é uma coisa terrível, contudo, o meu sentido de vida é muito forte e o que defendo serem os fins que uma sociedade deve prosseguir garantem-me uma posição segura no Não. Apesar de todos os argumentos do Sim, nenhum me parece ser significativamente forte face a um Ser. Por isso, a vida para mim hoje e sempre!