“Falámos do desenvolvimento paulatino. Eu disse que cada qual resolve por si a questão de fazer o bem ou o mal, sem esperar que a humanidade chegue à solução deste problema pela via do desenvolvimento paulatino. Além disso, este tipo de desenvolvimento é uma espada de dois gumes. Paralelamente ao desenvolvimento paulatino das ideias humanistas, observa-se também o crescimento gradual de ideias de outro género. Já não existe a servidão da gleba, em compensação cresce o capitalismo. E, no auge das ideias da libertação, a maioria continua a alimentar, a vestir e a defender a minoria (…) continuando ela própria faminta, despida e indefesa. Este sistema convive perfeitamente com quaisquer correntes e ideologias, porque a arte da escravidão também de cultiva paulatinamente. (…) Entre nós, ideias são ideias, mas se pudéssemos, mesmo hoje em dia (…), encarregar também os operários dos nossos processos fisiológicos mais desagradáveis, fá-lo-íamos, e de certeza que o justificaríamos dizendo que se as melhores pessoas, pensadores e grandes cientistas, gastassem o seu tempo precioso nesses processos o progresso correria um sério perigo”*.
O texto é um clássico, mas as ideias são quase pós-modernas, tal a actualidade das palavras.
Sou um adepto da economia de mercado - creio que temos aqui o melhor ponto de encontro de vontades - com a intervenção reguladora do Estado; creio que também é isso que faz de mim um social-democrata in the portuguese way.
Porém, pergunto-me várias vezes se não estamos a ir longe demais, tal o grau de consumo supérfluo e de endividamento draconiado. Já o tenho dito, mas repito: chegamos ao ponto em que ganha corpo o receio da criação de autênticos direitos de propriedade sobre sujeitos.
Além disso, emagrece para perto da anorexia a classe média, extremando-se as disparidades sociais.
Falta, a meu ver, uma atitude mais pedagógica por parte dos políticos mais conceituados.
Como canta Rui Reininho na música "Cais" (a mesma de onde nasceu a ideia para o nome deste blog): "se o mercado impera, e vais sempre longe demais/ muito cuidado, quando escorregas sempre cais" (cito de cor).
*Tchékhov, Anton, “A minha vida”, in “Contos de Tchékhov”, vol. V, pp. 222-3, Lisboa, Relógio D’Água Editores, Maio de 2006.
*Tchékhov, Anton, “A minha vida”, in “Contos de Tchékhov”, vol. V, pp. 222-3, Lisboa, Relógio D’Água Editores, Maio de 2006.
6 comentários:
Gonçalo, supõe-se que as pessoas são crescidinhas, responsáveis, livres, sabem fazer contas, votam, são elegíveis e não precisam que o Estado faça de baby-sitter e lhes diga o que podem ou não fazer.
Rui Miguel
Em primeiro lugar, sublinho que tiveste falta, na 6ª!
Depois, Ninguém falou em Estado omnipresente, mas sim em regulação.
Não caindo na descrença do Hobbes, penso, todavia, que é importante que haja um ponto de ordem.
O Marx foi prova do erro que é subestimar a natural estupidez humana; o resultado foi o que se conhece: uma interessante construção teórica que redundou em fundamento de crimes passados, presentes e futuros.
De igual modo, creio que será esse o erro do liberalismo puro. Sem excessos tutelares, entendo que o Estado (ou, numa equação ideal, uma sociedade civil forte) deve estabelecer regras gerais de convivência e uma rede mínima de dignidade social, para além da qual ninguém deve cair.
Helder
Bom comentário!
Pego no exemplo sueco para recuperar uma "longa marcha" (para tocar também na tua alusão à China)que, há muito, encetei: a do sublinhar que uma das causas do nosso atraso é mesmo o défice de cultura cívica e de noção do bem comum.
Egoístas que nos vamos tornando (epidemia ocidental), descuramos ainda aquilo que há no Centro e Norte da Europa, no que a bons exemplos de gestão do interesse público diz respeito.
O que referes em relação a muitos altos quadros portugueses é bem verdadeiro e o mal alastra mesmo a muitas empresas privatizadas que conservaram vícios do sector público.
Por cá, políticos e gestores não estão habituados a prestar contas pelos maus resultados.
Porém, como na Suécia (onde, como sabes e referiste, a presença estatal é forte), entendo que o Estado tem de ser o fiel da balança.
Em relação a 6ª, devo dizer que estou consternado! Como o contacto foi feito há muito tempo, eu assumi (mea culpa) que haveria uma confirmação e detalhes próximo do evento, e correu-me mal.
Quanto ao Capitalismo de Estado aqui advogado, não me parece uma boa ideia: o Estado deve ter um papel regulador, prevenir e punir abusos, mas não deve, por regra, ser empresário. Aliás, na Suécia, um dos problemas do modelo é precisamente o excessivo peso do sector público na economia; pese os bons resultados que os Suecos têm alcançado, o sistema dá sinais de rotura, nomeadamente ao nível do emprego, que não são alheios à (bem vinda) mudança política no país.
Parece-me, de facto, que perdemos como objectivo o "Optimo de Paretto". "Utopia" ou não este deveria ser sempre o IDEAL a manter. Este "Optimo" ganhou agora um novo modelo, mas uma subversão ao original. O equilíbrio perdeu-se e o limiar da fronteira também, e de cada vez que se enche um dos pratos da balança, o outro vai pendendo para o limiar sim, mas da pobreza extrema. Admito que não sei dar uma solução óbvia mas também vejo claramente que não será este o caminho a tomar.
Aqui no "Lodo", mais uma mera opinião.
Expressei-me mal; usei o exemplo da Suécia como contra-argumento.
Também prefiro menor intervenção. Para mim, o máximo é o que defendeste, Rui.
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